Milhões de pessoas no mundo inteiro prepararam um pacote de pipocas e sentaram-se no sofá para ver Donald Trump a implodir em direto na televisão. Esperemos que pelo menos as pipocas fossem boas, porque a implosão, incrivelmente, não aconteceu. Uma sondagem da CNN mostrou que 57% das pessoas acharam que Hillary Clinton ganhou o debate. Certo, mas a história não acaba aí. Primeiro “mas”: mas, no primeiro debate, a vitória da democrata tinha sido maior. Segundo “mas”: mas 63% dos inquiridos acharam que esta madrugada Trump se saiu melhor do que estavam à espera.

Trump, Trump, Trump. Esta campanha é toda sobre Trump. No debate, ele falou durante 40 minutos e 10 segundos (Hillary durante 39 minutos e 5 segundos) e foram as frases dele que marcaram uma noite que mais pareceu um combate de boxe. Aqui estão seis delas.

“Ninguém tem mais respeito pelas mulheres do que eu. E as mulheres têm respeito por mim e quero dizer-vos que eu vou tornar o nosso país seguro, vamos ter fronteiras no nosso país, coisa que não temos agora.”

Uau! Duplo flik-flak, seguido de mortal encarpado. A pergunta era sobre aquele vídeo onde Donald Trump aparece a falar sobre a forma como se aproveita sexualmente de mulheres e, num desafio à lógica e ao bom senso, a resposta acabou na necessidade de “tornar o nosso país seguro”. O que é que uma coisa tem a ver com a outra: ri-go-ro-sa-men-te nada. Pelo meio, duas demonstrações de humor involuntário. Primeira: “Ninguém tem mais respeito pelas mulheres do que eu”. Segunda: “E as mulheres têm respeito por mim”.

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“Boa, três contra um”

É como aqueles jogos de futebol solidários em que temos uma equipa contra “o resto do mundo” — Donald Trump acusou várias vezes os dois moderadores do debate de se juntarem a Hillary Clinton para o atacarem.

Não é táctica, é convicção. O candidato republicano acredita mesmo que a Torre Trump está cercada por inimigos que têm de ser combatidos com todos os recursos do dicionário. Há dias, o The New York Times fez um dos trabalhos jornalísticos mais surpreendentes dos últimos anos: juntou num só artigo as 273 “pessoas, locais e coisas” que Trump insultou no Twitter durante a campanha eleitoral. Hillary Clinton é “muito burra”. Um dos adversários republicanos de Trump, Ted Cruz, é “um triste”. O antigo candidato presidencial republicano John McCain “é incapaz de fazer seja o que for”. E por aí adiante, numa desconcertante demonstração de terraplanagem política.

Trump só se sente bem quando pode fazer de conta que está na cena final do filme “Butch Cassidy and the Sundance Kid” — rodeado de inimigos, recusando render-se e preparando-se para começar a correr de armas nas mãos em direção às forças que o cercam. Talvez a sua fraca capacidade de se concentrar o tenha impedido de perceber que os dois morrem no final do filme.

“Porque estarias presa…”

Os comentadores da CNN estavam de boca aberta (e, apesar da hora, não era a bocejar). Donald Trump disse mesmo que, se ganhasse a eleição, iria nomear um procurador especial para investigar Hillary Clinton? E disse mesmo que iria mandá-la para a cadeia? Parece que sim. Ou não: alguns defensores de Trump argumentaram que foi tudo uma piada demasiado inteligente para ser entendida por jornalistas. (Ah, certo.)

Mas, na realidade, há aqui um problema para Hillary. Uma das razões que faz com que Trump queira prender a sua opositora de maneira tão vigorosa é a forma como ela usou uma conta de email privada enquanto era secretária de Estado. E, aí, não há muito que Hillary possa fazer: já pediu desculpa várias vezes e pode apostar-se sem medo de perder dinheiro que vai continuar a fazê-lo.

“Ela mentiu. Ela mentiu sobre muitas coisas”

Durante o debate, Trump e Hillary usaram a palavra “mentira” e “mentiroso” mais vezes do que Jerónimo de Sousa usa a palavra “portanto” durante uma entrevista. O The New York Times fez 27 fact checks em direto e o resultado foi instrutivo.

Donald Trump:

  • 13 mentiras
  • 7 meias-verdades (ou meias-mentiras)
  • 2 verdades

Hillary Clinton:

  • 1 mentira
  • 1 meia-verdade (ou meia-mentira)
  • 3 verdades

Aliás, o The New York Times, um dos jornais mais cautelosos do mundo, anda impressionado com as mentiras de Trump. Há alguns dias, usou, para eterno espanto dos seus leitores, a palavra “mentira” numa manchete sobre o candidato republicano, deixando para trás expressões mais polidas, como “falsidade” ou “inverdade”.

“Claro que fiz isso, claro que fiz isso”

Foi o momento mais cândido da noite. Quando os moderadores perguntaram a Trump se era verdade que tinha usado uma declaração de prejuízos para evitar pagar impostos, ele nem pestanejou e admitiu que sim, como se estivesse a fazer algo tão simples como beber um copo de água.

“Hillary Clinton quer levar todos os mineiros à falência”

Durante a campanha, Donald Trump insultou adversários (suspiro), gabou-se de não pagar impostos (suspiro mais profundo), gozou publicamente com mulheres por serem gordas (revirar de olhos), vangloriou-se de conseguir aproveitar-se sexualmente de mulheres só por ser famoso (espanto seguido de fúria). Trump fez tudo isto, faz tudo isto e continuará a fazer tudo isto — mesmo assim, a média das várias sondagens mostra que há 41% de americanos que pretendem dar-lhe o seu voto. Mais ainda: numa sondagem realizada horas depois de o último vídeo polémico de Trump ser conhecido, só 13% das mulheres republicanas acharam que ele devia desistir da corrida.

Parece inacreditável? Parece. Mas a popularidade de Donald Trump não surgiu do ar. A sua força política assenta numa realidade dura e profunda. A maioria dos seus apoiantes são desempregados, e acham que o sistema os abandonou depois de anos de sacrifícios, em fábricas e minas; são pobres, e acham que o Estado não os protege; são brancos, e acham que as elites apoiam apenas as minorias étnicas; são homens, e acham que o país os empurrou para um buraco de humilhação.

No livro Hillbilly Elegy: A Memoir of a Family and Culture in Crisis, J.D. Vance explica porque é que os apoiantes de Trump não são extraterrestres nem párias — são, simplesmente, eleitores que não tinham ninguém que os representasse. Agora, já têm. E isso é uma das coisas que explica porque é que Trump não implodiu em direto esta madrugada.