O escritor Emile Zola e o pintor Paul Cézanne protagonizaram, no século XIX, uma das mais longas e profundas amizades entre artistas, que se terá dissolvido quando Cézanne se sentiu retratado negativamente na personagem principal de um romance de Zola, ‘L’Oeuvre’, publicado em 1886. A argumentista e realizadora Danièle Thompson, filha de Gérard Oury, o rei da comédia popular francesa, e autora dos argumentos de filmes como “A Grande Paródia”, “As Aventuras do Rabi Jacob”, “Cousin Cousine”, “A Primeira Festa” e “A Rainha Margot”, interessou-se por esta história de amizade e pela ainda hoje muito discutida zanga entre o escritor e o pintor, e passou-as para cinema em “Cézanne e Eu”, que se estreou esta semana depois de ter sido o filme de abertura da Festa do Cinema Francês. O Observador foi falar com ela.

[Veja o “trailer” de “Cézanne e Eu”]

Este filme representa uma mudança de registo para si, enquanto realizadora. Não é uma comédia ligeira, nem uma comédia dramática de ambiente contemporâneo como as que costuma fazer. É um filme de época, sobre dois artistas Paul Cézanne e Emile Zola. Foi uma mudança deliberada?
Enquanto argumentista, eu escrevi filmes muito diferentes, mas como realizadora, sim é uma mudança. E isso agradou-me muito, porque estava a fazer comédia atrás de comédia, e há alguns anos tinha lido sobre a relação de amizade que havia existido entre eles, embora não soubesse se a amplitude dessa relação fosse suficiente para dar origem um filme. Tive que ler muita coisa antes de decidir que ia escrever um argumento, ao contrário de quando fazemos um filme de ambiente contemporâneo, em que nos metemos logo ao trabalho. Neste caso, precisava de tempo e lancei-me na leitura da correspondência entre ambos, e até falei com a bisneta de Zola, que trata da casa dele, onde filmei, nos jardins, tal como filmei na cabana que Cézanne arrendou durante toda a sua vida, nesse campo de Aix-en-Provence que é sublime. E assim, decidi-me a filmar a história dessa amizade, embora tenha tido de a reinventar um pouco.

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Porque é que se interessou especificamente por esta amizade entre Cézanne e Zola? O que é que ela tem de especial?
Fiquei muito surpreendida por ser uma amizade de infância. É uma coincidência incrível que dois rapazes de 12 e 13 anos, numa vilazinha de França, em 1850, se encontrem no colégio e um se torne num dos maiores escritores do século XIX, e o outro num dos maiores pintores. É impressionante. O que me fascinou em especial, sobretudo quando li as cartas – e é uma correspondência de uma grande intimidade -, foi a zanga entre eles. Eu li na mesma altura, num artigo de jornal, que eles se tinham zangado depois da publicação de um livro de Zola, “L’Oeuvre”, onde Cézanne se sentiu retratado. É uma história de amizade entre artistas, de trajetórias artísticas, de traição entre artistas, do sucesso de um e não do outro e da dor que isso traz, da necessidade de reconhecimento público, de mulheres e de famílias, do facto de eles terem origens totalmente diversas, Cézanne o filho de um grande burguês, Zola um órfão de pai muito pobre que conheceu a fome, o frio e a pobreza. Tudo isto me pareceu mais apaixonante do que apenas o encontro entre duas pessoas muito importantes que se tornam amigos. Foi o antes e o depois que me apaixonou.

[Os dois actores falam sobre o filme e as suas personagens]

Zola ficou famoso e transformou-se numa personalidade da literatura e da cultura francesa, e numa figura pública muito influente, enquanto que o reconhecimento artístico veio muito tardiamente para Cézanne, o que também é muito interessante.
Sim, eles têm trajetos contrários, e não paralelos, a vida toda. E Zola escreve os seus melhores livros antes dos 50 anos, enquanto que Cézanne pinta os seus melhores quadros depois dos 50 anos. E Zola, que foi um grande crítico de arte e que defendeu os impressionistas quando era jovem, quando começou a envelhecer, renegou os impressionistas e tinha gostos muito mais convencionais. Ele já não viu os últimos quadros de Cézanne, que são os mais revolucionários, porque morreu antes. Se os tivesse visto, não tenho a certeza se os teria compreendido, porque Cézanne estava nessa altura muito perto da abstração, e Zola era o último dinossauro do naturalismo.

Saiu recentemente um livro em França que nega que essa grande zanga entre Zola e Cézanne tenha existido, e diz tratar-se de uma “lenda negra”. Qual é a sua opinião, já que essa zanga é central no filme?
É uma história muito complicada, porque depois da morte de ambos, os especialistas em Zola e em Cézanne, ou em ambos, estão de acordo que foi esse livro de Zola, “L’Oeuvre”, publicado em 1886 que provocou a rutura. E há uma carta, que refiro no filme, bastante neutra, mas não insultuosa, após a qual não há mais correspondência entre os dois. No filme, porque tenho liberdade para isso, inventei que eles se reencontraram, é assim que ele começa, mas não há provas disso. Mas sucedeu que quando já tinha acabado de escrever o argumento, telefonei às pessoas de Aix que são os “guardiões do templo” de Cézanne e falei com um senhor que é o conservador do “atelier” dele, que me informou da mais recente carta de Cézanne a Zola, descoberta seis meses antes.

[Sobre Paul Cézanne]

https://youtu.be/mQ-tWz1k7iU

De quando data essa carta?
De um ano depois da zanga. Nela, Cézanne agradece a Zola por lhe ter enviado “La Terre”, o livro escrito a seguir a “L’Oeuvre”, e acaba assim: “Vou aí ver-te”. Fiquei espantada, porque era isso que eu tinha inventado para o meu filme. Se Cézanne chegou mesmo a ir ver Zola, ninguém sabe, não há provas nem testemunhas. A minha grande cena, onde eles se travam de razões, decerto que nunca aconteceu, é uma liberdade que tomei enquanto autora, e que assumo. Mas lá que eles se afastaram um do outro, isso é inegável. Não há rasto de mais correspondência, qualquer coisa se quebrou entre os dois. E quando se lê “L’Oeuvre”, é evidente que Cézanne se reconheceu na personagem do artista, que é uma personagem terrível, depressiva, infeliz.

Os atores que interpretam Zola e Cézanne, Guillaume Canet e Guillaume Gallienne, foram as suas primeiras escolhas para os papéis?
Sim, foram. Eu propus a personagem de Zola a Gallienne, mas ele disse-me que queria antes interpretar Cézanne, Fiquei um bocado incomodada, mas depois de fazermos algumas leituras achei-o extraordinário para o papel. A seguir, enviei o argumento ao Canet, ele aceitou e depois foi tudo muito rápido, a partir do momento em que mudei a minha visão das personagens e dos respetivos atores dentro da minha cabeça. Felizmente que o Canet não me disse que queria era interpretar Cézanne!

[Sobre Emile Zola]

https://youtu.be/O05vNadXk9I

Fazer um filme como “Cézanne e Eu”, nesta altura, em França, é mais ou menos difícil, por exemplo, do que há 15 ou 20 anos?
Eu diria que é ainda mais difícil, porque já há 15 ou 20 anos o era. As pessoas são muito desconfiadas, porque é um filme sobre artistas, e não sendo terrivelmente caro, também não é um filme pequenino, porque tem muito trabalho, muita recriação de época. Em termos de produção, situa-se no “meio da estrada”, por assim dizer. Não é um filme “social”, como se fazem muitos agora em França, e que muitas vezes são magníficos, mas são sobre as misérias da nossa época, o desemprego, o medo, os jihadistas, os migrantes; e não é uma comédia, exatamente o oposto daqueles e muito apreciadas porque as pessoas têm vontade de rir, e as comédias são menos arriscadas de produzir e mais fáceis de pôr de pé. E com “Cézanne e Eu”, quis fazer algo diferente, um filme popular, nada elitista, embora o tema seja elitista. Tem uma clientela um bocado restrita, portanto. Está mesmo ali no meio do caminho da produção francesa.