Um empate (Besiktas, 1-1 na Luz) e uma derrota (4-2 em Nápoles): em seis pontos possíveis, o Benfica só faz um. É o último classificado, por diferença de golos, em relação ao Dínamo Kiev. As duas equipas encontram-se hoje na Ucrânia, onde o Benfica só ganha ao Shakhtar (bis de Cardozo em 2007) e perde duas, uma das quais precisamente em Kiev, na primeira edição de sempre da Liga dos Campeões, em 1991-92. Aliás, a história do Benfica na prova começa em Kiev, a 27 novembro, numa tarde em que Rui Águas faz sem querer o passe para o solitário 1-0 de Salenko (31′) antes de se lesionar gravemente a dez minutos do fim. Wow, a vida vai torta e jamais se endireita? Calma aí, Rui Águas volta a jogar em abril do ano seguinte. E este Benfica, lesionado desde o 2-1 ao Zenit em São Petersburgo, na época passada, quando volta a jogar? Essa é a pergunta do momento.

Líder isolado do campeonato nacional, a equipa de Rui Vitória está longe de respeitar a tradição, além de dever pontos ao nosso país para o ranking da UEFA. A reação tem de começar esta quarta-feira à noite (19h45 na SportTV1), na cidade do “Fuga para a Vitória”. Como é que é? Isso mesmo, Kiev é a capital do futebol e até do cinema, ainda que fugazmente, por obra e graça de John Huston. Lembra-se do filme em que os bons dos aliados empatam 4-4 com os maus dos nazis e fogem às atrocidades da guerra, ajudados pela multidão? Claro que sim, quem se esquece disso no seu perfeito juízo? É o filme de uma vida. O cabrito de Ardiles. A bicicleta de Pelé. O voo de Stallone. A fuga para a vitória. A ficção passa-se em Paris, a realidade em Kiev.

O destino é a rua Sholudenko. Aquela que cruza a Marshala Rybalko. Paralela à Vyacheslava Chornovola. É uma avenida grande e larga. No meio, um estádio completamente desfeito. Não tanto como o Vidal Pinheiro. Abre-se o portão e vemos balizas de um lado e do outro, mais pedaços enormes de lama misturados com relva. Não tão agressivo aos olhos como aquele Sporting-Porto em janeiro 1996 (bis de Domingos). Também constatamos as bancadas de pedra como o Inatel. Verdade seja dita, aquilo ali não é o Porto nem o Campo Grande, muito menos a Avenida do Brasil. É Kiev, puro e duro.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Tudo começa a 19 de setembro de 1941, quando Kiev é ocupada pelos nazis. Nos meses seguintes, a cidade é arrasada e os seus habitantes arrastados de suas casas. Não podem trabalhar e vivem na absoluta indigência. Josef Kordik, nascido na Checoslováquia, chega a Kiev em 1914 ao serviço das forças armadas austro-húngaras durante a 1ª Guerra Mundial e é gravemente ferido. Recupera lentamente até estar a cem por cento mas nunca mais sai de Kiev. É recrutado como espião pelos alemães, ao mesmo tempo que tem a função de abrir uma padaria com 300 funcionários para fazer 50 toneladas de pão/dia e alimentar os tais mendigos. Um deles é Nikolai Trusevich, antigo guarda-redes do Dínamo Kiev. Homem austero e severo, Kordik é também um apaixonado pelo futebol. Quando vê o seu ídolo a viver na rua, dá-lhe tecto e comida. Finta por assim dizer os nazis com o argumento de precisar dele como ajudante naquelas madrugadas intermináveis. Nas conversas entre ambos, fala-se muito de futebol, desta e daquela defesa, do jogo x e do jogo y. Até que Kordik tem uma ideia: e se Trusevich procurasse nas ruas de Kiev pelos restantes companheiros de equipa?

Aceite o desafio, Trusevich só encontra oito companheiros do Dínamo Kiev e ainda três jogadores do arqui-rival Lokomotiv Kiev. Juntos, comem e dormem na padaria de Kordik a troco de 12 horas de trabalho/dia. Continua a falar-se de futebol. Cada vez mais. E se houvesse um campeonato para animar as pessoas? A ideia não é do padeiro checo nem dos jogadores de Kiev, é das tropas alemães a pensar no desporto como forma de entretenimento para acalmar os mais insatisfeitos pela subjugação nazi. Cria-se então um campeonato com jogos aos domingos. Os jogadores escolhem o nome FC Start e iniciam uma era invencível. Jogam de vermelho (simbólico), com camisolas encontradas num armazém abandonado. A 7 junho 1942, o primeiro jogo. Apesar de cansados pelo trabalho invisível na padaria durante toda a noite, despacham os militares húngaros por 6-2. No dia 5 julho, 11-0 aos militares romenos (uns e outros, aliados dos nazis). A 12 julho, 9-1 à equipa militar dos caminhos-de-ferro.

A coisa começa a dar para o torto quando uma seleção do exército alemão é vergada ao peso de uma derrota impensável por seis-zero. A fama do FC Start espalha-se inevitavelmente e é porta-estandarte da superioridade daquele pedaço de território ucraniano em relação aos invasores. Os nazis, incomodados, contratam à pressa a conceituada equipa húngara MSG Wal, reputada como invencível. Ou talvez não… A 19 julho, 5-1. Querem desforra? Okay, mas depois não se queixem está bem? Aviados por 3-2 no dia 21 julho. Os nazis, esses, de incomodados a preocupados: tem de haver maneira de travar este ascendente desportivo que se alastra perigosamente. É a altura de ir a jogo com a Flakelf, a equipa alemã da 11ª esquadra utilizada como instrumento de propaganda de Hitler.

A 6 agosto 1942, o Flakelf leva um cabaz de 5-1. Berlim toma conhecimento da situação de euforia à volta do FC Start e pede desforra. Olha-me estes!, devem pensar devem. Na tarde de 9 agosto, o estádio Zenit (este aqui, o da Rua Sholudenko) enche-se como nunca. Mais de duas mil pessoas pagam bilhete a um preço considerável (já aqui), no valor de dois cigarros. Há guardas alemães em todo o lado, armados com espingardas e cães. Antes do jogo da morte, o árbitro (ups, um oficial da SS, desculpem o equívoco) entra no balneário dos ucranianos. “Respeitem as regras e levantem o braço”, que é como diz façam a saudação. Os alemães chegam num autocarro e equipam-se num balneário decorado por e para eles. Os ucranianos vêm a pé para o campo e equipam-se num improvisado balneário ao lado da casa do vigia.

As equipas estão perfiladas, os alemães cumprem o ritual com o Heil Hitler, os ucranianos nem tanto. Levantam o braço, sim, mas gritam Fizculthural, expressão soviética para a cultura física. De camisa branca e calção preto, os alemães até marcam primeiro antes de sofrerem dois golos até ao intervalo. Nesses 15 minutos, um oficial da SS (que não o árbitro) avisa os vencedores: “vocês até podem ganhar mas reflitam nas consequências.” Começa a segunda parte. Acaba o jogo. Cinco-três para os bons. No último minuto, o avançado Klimenko isola-se e finta o guarda-redes. Com a baliza aberta, dá meia volta e chuta a bola para o seu meio-campo. Que desprezo, que superioridade. É o delírio, os populares agitam-se dentro e fora do estádio, os alemães são humilhados, o MVP é entregue (ficticiamente, claro) a Klimenko.

Os alemães deixam passar uma semana para evitar um alvoroço desnecessário. No domingo, 16 agosto, o FC Start aplica um robusto 8-0 ao Rukh, uma equipa de outros ucranianos. É a nona vitória consecutiva. A última. A Gestapo invade a padaria e leva para interrogatório os jogadores do FC Start, sob acusação de espiões e terroristas. A esta tragédia, só escapam Goncharenko, autor de dois golos no 5-3, e Sviridovsky, o lateral-direito. Naquela altura, os dois não estão na padaria. Os restantes nove elementos são torturados, privados de sol e enviados posteriormente para campos de concentração. Acabam todos por morrer, inclusive o guarda-redes Trusevich, fuzilado pelas tropas alemães enquanto grita “a equipa vermelha nunca irá perder.”

Ainda hoje, os espectadores do 5-3 do FC Start à Flakelf entram gratuitamente em dias de jogo do Dínamo Kiev. Nas escadarias do clube, vê-se um momento com a inscrição “aos jogadores que morreram com a cabeça levantada ante o invasor nazi” a recordar aqueles heróis, os indomáveis heróis que ninguém pôde derrotar dentro de campo. São eles Nikolai Trusevich, Ivan Kuzmenko, Pavel Komarov, Alexei Klimenko, Nikolai Korotkykh, Georgy Timofeyev, Vasily Sukharev, Feodor Tyutchev, Makar Goncharenko, Mikhali Putistin e Mikhali Melnik.

A versão hollywoodesca desta história é o tal “Fuga para a Vitória”. A versão local chama-se “Match”, produção russo-ucraniana de 12 milhões de euros, com Sergey Bezrukov na pele do ator principal. “É um filme sobre o guarda-redes do FC Start, o jogador que encontrou todos os outros, o verdadeiro herói fuzilado cobardemente pelas costas vestido à FC Start”, transmite o realizador Andrei Maluykov aos jornais ucranianos. “Infelizmente, tivemos de usar um campo minúsculo nos arredores de Kiev porque o do jogo de 1942 está impraticável.” Sim, há demasiados prédios à volta, as pessoas fazem jogging e os adolescentes esgrouviados fumam deitados no banco de suplentes. Impraticável, é verdade, mas com a aura do heroísmo presente. Sempre.