Nunca tínhamos visto o Coliseu dos Recreios com esta disposição. O querido mudou a casa, estamos na mesma sala mas os móveis mudaram de sítio. Subimos à zona especial. É aqui que fica o palco na grande maioria dos dias mas agora é uma varanda com vista para o cenário onde tudo acontece. As quatro crews em questão estão arrumadas no primeiro balcão, com o público, o grande decisor da Red Bull Music Academy Culture Clash, a separá-las. Isto promete combate numa quinta-feira à noite. É improvável mas nós agradecemos.

Alex D’Alva Teixeira surge num dos camarins e faz a apresentação do conceito, debita as regras, tudo como tem que ser feito. Está com Gisela João, “A mulher mais bonita do Coliseu”, com quem faz dupla na tarefa de acolher a maralha. Pedem barulho à plateia para testar os decibéis e podemos ver as contas em tempo real no ecrã gigante através de um sonómetro. É precisamente esse medidor que vai decidir o vencedor em cada round.

O Club Atlas é a primeira crew a entrar em competição. Branko sobe ao palco com Fred Ferreira e DJ Riot nos pratos, bem como Carlão e Kalaf na voz. E pronto, o que é que se esperava? O baile global já começou, algo que no início vai mais pelo típico clash jamaicano mas que depressa salta para um remix de “Yah!”, dos Buraka Som Sistema. Melhor só a seguir: uma versão distinta de “Re-Tratamento”, dos Da Weasel, à que já conhecíamos da Cooltrain Crew.

Subitamente, algo estranho, a Moullinex Live Machine faz soar o alarme: já estão na área. Junto à paragem do Club Atlas o som chega tímido. Ainda assim, graças à insanidade de palco de Da Chick a coisa lá se vai compondo — lá está, quem tem guitarras tem que fazer barulho de outra maneira. E quando o digital chega, toma o controlo da operação

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Às tantas damos por nós meio perdidos, em busca da melhor posição, até porque a Matilha já soltou os cães. É aqui que está a crew mais ligada ao hip-hop, do trap, “o som da moda”, como viria a dizer mais tarde Kalaf. Ride trouxe os MGDRV, Jimmy P e um número claramente exagerado de convidados para o tamanho do palco, uma confusão desmedida que por muito que lhes confira força, entre remisturas de Kendrick Lamar e “We Are The Champions” – que para primeiro assalto talvez seja bazófia a mais –, não lhes deve trazer grandes motivos de celebração.

Para isso temos a equipa de Batida. Pedro Coquenão já nos acostumou a esta veia fora do formato. “Aqui deste lado a cena é partilha”, isto enquanto avisa que o primeiro assalto é de teste e que “o chão é um bocado áspero, mas pronto”. DJ Satélite entra na mesa de mistura e voamos todos para África, a morna, o semba e sobretudo o fantástico funaná com o rap dotado de Karlon, membro dos Nigga Poison. Estamos em Cabo Verde e a festa só acaba amanhã de manhã.

Segundo round

Desta vez a Moullinex Live Machine vem com mais vontade e com “Let’s Do The Bird All Night Long”, de Legendary Tigerman, há sempre um tempinho para os blues e para o rock — e com a ginga de Selma Uamusse e de Da Chick isto ganha outro encanto. Esta última é, de longe, o expoente máximo da competitividade da Moullinex Live Machine.

As rounds sucedem-se e o clima aquece, já há quem se pronuncie diretamente para as outras crews, desafio é desafio e no final amigos na mesma, esperamos nós. A tropa da testosterona que é a Matilha prossegue na confusão, o complexo aqui é entender alguma coisa do que se diz em palco, a performance chega a dar ares de dança cheerleader mas em versão musculada.

Isto quase parece batota quando se aproxima a vez de Batida. Para a segunda ronda Coquenão traz uma remistura de “Bazuca” e os irmãos Cabral, bailarinos que o têm acompanhado, um exploratória”rumble in the jungle” exploratório, que provoca a melhor das danças e muito barulho cá em baixo. E a atuação, como sempre, vem bem preparada. Na claque que os apoia contam-se cartazes com as caras dos ativistas angolanos presos em Angola, disposta em linha no bancada superior. No palco saudamos, com a mesma ironia de Batida, os cartazes de José Eduardo dos Santos que servem para tudo menos para o apoiar. Isto é uma noite de farra, claro que é, mas há coisas que não podem ficar esquecidas.

Mas estão desfeitas as dúvidas: o Coliseu está inclinado para este lado da herança africana, é aqui que está a festa no seu melhor estado. O mashup de “Pobre e Rico” é uma delícia. Segue-se o Club Atlas, ainda mais decidido. Kalaf trata de enviar a mensagem em direção à Matilha: “Se vêm para aqui com sons da Rádio Cidade, podem esquecer”. Safa.

Roda a garrafa e segue a dança, sobretudo quando Pongolove nos faz recuar ao mega hit “Kalemba (Wegue Wegue) “. A crew de Batida tem concorrência, por certo. Branko tem o estatuto certo para mexer em “Tá Tranquilo, Tá Favorável”, de MC Bin Laden, com quem já colaborou. Ninguém consegue fugir, o segredo é dar tudo nos melhores truques de dança.

No final da segunda ronda não há dúvidas, Batida + Kambas e o Próprio Kota! está na frente. O problema da constante berraria do público é que convém distinguir o momento certo para investir no aplauso. Se vamos na desportiva de querer gritar para todas as crews, à terceira tentativa está-se mudo. Outro cuidado é o pescoço, isto é um carrossel de quatro palcos e pede moderação ou vai acabar em torcicolo.

Ataque final

Pedro Coquenão vem para o terceiro assalto de armas em riste, pelo menos em palavras. Apresenta o conceito de “estiga”, um gozo mas feito com amor. E desata a criar animosidade “até porque isto vem no contrato”: para confrontar a Matilha pede a Bonga para fazer um scratch angolano, que é feito com a dikanza, “não é um reco-reco porra”. Vira-se para Moullinex e cumpre um dos melhores episódios da noite. Traz uma moullinex, o verdadeiro eletrodoméstico, e faz kuduro com esse mesmo objeto, acompanhado por Satélite nos pratos e Bonga ainda na dikanza. Esperemos que tenham gravado esta faixa que agora fizeram nascer. E claro, há um pouco de injsutiça aqui: porque quem tem Bonga fica logo mais perto da vitória.

Ainda assim há quem queira bater-lhes o pé. O Club Atlas traz os seus trunfos: remixes de Sam The Kid, Regula, 5-30. E mais: as dicas para as outras crews vêm gravadas de casa, que chegam a ir ao fado com boleia de Ana Bacalhau e Camané. Tempo ainda para uma grande versão de “Tás Na Boa” dos Da Weasel, com Mike El Nite e Da Chick por parte da Moullinex Live Machine. Vitória certa para esta gente boa.

E depois o golpe final. Na última ronda, destinada a convidados especiais, Batida traz os Konono n.1. A casa vem abaixo, mas como é que é possível dar a volta a isto? É sempre possível, esse é que é o grande truque da noite. Este formato permite surpresas constantes, o desafio tem por base o inesperado e é também por isso que resulta tão bem e pode repetir-se, quando quiserem.

A crew de Branko arrisca tudo: leva ao palco Nélson Freitas e Richie Campbell e é impossível controlar o público. Moullinex também não perdoa: traz Marta Ren, que faz um trio vocal feminino com Uamuasse e Da Chick digno de big band. A trupe da Matilha segue com Capicua e uma nova viagem a “Vayorken”. E tempo de sobra para Dillaz, Valete e ainda Conductor — uma mini-traição ao clã de Branko e às coisas dos Buraka Som Sistema. Prova de que aqui são todos amigos. No final vence o Club Atlas mas ninguém perde, é cliché mas é verdade. Para o ano há mais, só pode.