Quando publicou o primeiro livro em 1987, Hédi Kaddour era apenas um poeta. Um poeta argelino (mas oficialmente francês), criado em França e com mais de 12 anos de vida passados em Marrocos. Foi assim durante quase 30 anos até que um passeio por Paris mudou tudo. Quando chegou a casa naquela tarde do final dos anos 90, percebeu que nunca mais iria escrever poesia — queria escrever um grande romance. Passou os sete anos seguintes a aperfeiçoar uma história sobre franceses, alemães e norte-americanos, a que chamou Waltenberg.

Cinco anos depois, em 2010, publicou Savoir-vivre — “uma história britânica verdadeira” — e, em 2015, Os Preponderantes, romance que chega agora a Portugal pelas mãos da Porto Editora. Aplaudido pela crítica, o livro recebeu os prémios Valery-Larbaud e Jean-Freustié. Nesse mesmo ano, foi-lhe atribuído o Grande Prémio Romance da Academia Francesa, um dos mais importantes galardões literários franceses.

No dia em que apresentou Os Preponderantes no Institut Français du Portugal, em Lisboa, fomos encontrá-lo num hotel em Picoas, onde estava hospedado. Recusando-se como sempre a falar da atualidade, a conversa seguiu por outros caminhos — História e até um pouco de poesia. Apesar de o tempo dos livros do poemas já ir longe, Hédi Kaddour tem esperança de que os romances que escreve tenham ainda um pouco de poesia, subtilmente, sob a forma de uma sombra.

Os Preponderantes

“Os Preponderantes” chegou às livrarias a 4 de outubro. Custa 16,60 euros

O livro começa com a chegada de uma equipa de filmagens norte-americana a Magrebe, uma cena que é inspirada em factos reais. Porque é que quis contar essa história?
Queria fazer uma espécie de ficção de mundos — uma ficção, um romance, em que mundos diferentes se encontrassem, entrassem em contacto ou em confronto, em diálogo. Na altura não sabia onde é que a história ia acontecer. O meu primeiro romance, Waltenberg [2005], era sobre as relações franco-germânicas e os Estados Unidos da América. O segundo, Savoir-vivre [2010], era uma história britânica verdadeira. Encontrei-a na imprensa britânica nas últimas páginas de um jornal. Lembro-me que foi no Sunday Telegraph. A história estava lá. Mas em relação a esta, não sabia onde é que ia acontecer. Tinha a ideia do Magrebe, mas tinha apenas dois grupos — o mundo colonial e os colonizados. Depois li sobre a ida de realizadores norte-americanos para o Magrebe para gravarem filmes.

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No início dos anos 20, havia muitos “filmes de xeiques”, como lhes chamamos, filmes sobre o Médio Oriente, a Arábia ou a Turquia. Costumavam ir para o Magrebe filmar porque era menos caro do que ir para o Oriente [risos]. E havia também outra razão — costumavam ir para protetorados franceses, como Marrocos ou Tunísia, porque os franceses estavam lá e porque já existia uma infraestrutura. E também havia camelos e isso tudo. Quando descobri isso, vi que tinha encontrado um terceiro elemento.

A peça que faltava.
Sim, era o terceiro elemento que trazia um novo ponto de vista. Fiquei com três mundos — o norte-americano, o magrebino e o francês. Era como se fosse um triângulo. É muito mais divertido trabalhar com um triângulo do que apenas com dois lados. Foi esta a razão.

Nessa história onde três mundos que se encontram, não acaba também por haver um choque de culturas?
Nunca pensei em falar sobre um choque de culturas. Pensei em fazer algo sobre a vida do dia-a-dia com um pano de fundo histórico. Não era bem um tempo de grandes embates. O Magrebe estava pacificado, como os franceses costumavam dizer.

Mas era mesmo uma zona pacífica ou havia uma ideia errada do que se passava?
Sim, era. Especialmente na Tunísia, talvez menos em Marrocos. A grande aventura colonial tinha acabado. Era um tempo de ordem — de ordem francesa, de lei francesa. Não era uma época de embates, era uma altura de conflitos do dia-a-dia. De coisas pequenas.

A história de Os Preponderantes passar-se numa cidade imaginária, Nahbès, que fica num país que nunca é referido. Sabe-se apenas que fica na zona do Magrebe. Porque é que decidiu criar um lugar fictício em vez de usar um que já existia?
Por causa da minha experiência. Vivi na Tunísia nos primeiros 12 anos de vida, então tinha muitas memórias e lembranças da língua árabe. Ao fim de 12 anos, fui para França. Aprendi francês, tive aulas em francês, e no início dos anos 70 fui para Marrocos trabalhar como professor de francês. Fiquei lá 30 anos. Fiquei mais tempo em Marrocos do que na Tunísia, mas tinha memórias dos dois países e, a certa altura, não consegui decidir-me entre Marrocos e Tunísia, Tunísia e Marrocos. Então decidi que não ia haver nenhum nome específico — haveria um país, uma capital e um soberano. Só isso.

O engraçado é que quando falo com pessoas da Tunísia, elas dizem-me que o país do livro é a Tunísia, e quando estou em Marrocos, dizem-me “Oh, é Marrocos! Reconheci logo!” [risos].

Então acaba por ser uma mistura dos dois?
Sim, é uma mistura, claro. Trata-se provavelmente de uma cidade de um dos dois países. Eles não são assim tão diferentes — eram monarquias, protetorados árabes…

Sentiu isso quando lá viveu? Que havia muitas semelhanças?
Existem diferenças entre eles, mas no romance pude usar elementos que são semelhantes.

Nasceu na Tunísia, cresceu em França, viveu em Marrocos. Em que país é que se sente em casa?
Sou francês. Nasci francês porque a minha mãe era francesa. O meu pai era tunisino, mas em termos oficiais sou francês.

Então nunca se sentiu tunisino?
Gosto de ser tunisino, gosto de ser marroquino, mas sou francês. Sempre que vou a Berlim, penso que gostava de ficar lá.

Porquê?
Porque gosto! Gosto da literatura, das pessoas, da forma fácil com que se vive lá. Gosto de muitas coisas. Mas quando estou em Chicago ou em Nova Iorque, sinto a mesma coisa.

Então gosta de grandes cidades?
Sim, gosto muito.

French writer Hedi Kaddour poses on September 14, 2015 in Paris. AFP PHOTO / JOEL SAGET (Photo credit should read JOEL SAGET/AFP/Getty Images)

O escritor nasceu na Tunísia em julho de 1945. Tem 71 anos (SAGET/AFP/Getty Images)

Disse numa entrevista que este romance é o “romance das oportunidades perdidas”. O que é que quis dizer com isso?
Quando estava a trabalhar na Biblioteca Nacional de Paris, encontrei uma lei de 1922 que pretendia dar a independência aos protetorados franceses no norte de África. Uma lei que estava pronta. Pensei que tivesse sido feita pela esquerda radical, mas quando olhei para as assinaturas vi que estavam lá todos os grandes nomes do mundo político francês, da esquerda à direita. Estava, por exemplo, o nome de Maurice Barrès, que era líder de um grupo de nacionalistas de esquerda, e os Princes Murrat, de ascendência napoleónica. Cerca de 80% dos deputados estavam dispostos a conceder a independência àqueles países.

Passados uns meses, os preponderantes — que eram o lobby mais poderoso e organizado de França –, conseguiram revogar a lei. Nesse mesmo ano, Inglaterra deu a independência ao Egito. Por trás disso, estava um plano [os Catorze Pontos] do Presidente [norte-americano Thomas Woodrow] Wilson que referia o direito que as pessoas tinham à independência. Havia, por isso, uma oportunidade que se perdeu.

Todos os seus romances falam de um momento histórico específico. Porquê este fascínio pela História?
Acho que um romancista deve trabalhar com o passado. Há uma citação muito bonita de Thomas Mann em A Montanha Mágica, Der Zauberg — “Der raunende Beschwörer des Imperfekts”, que se pode traduzir por “O contador sussurrante do pretérito imperfeito”. Acho que é uma definição muito bonita disso.

Então acha que um novelista não deve escrever sobre o futuro?
Talvez. As coisas precisam de ter acontecido para poderem ser contadas. Acho que falar sobre o futuro é um género literário muito diferente — não é aí que está a arte de escrever um romance. Há pessoas que também escrevem sobre o presente. Eu tentei escrever um romance sobre os dias de hoje, mas sem sucesso. Não fui capaz de dizer mais nada para além do que vem nos jornais. Acho que muitos novelistas dizem o mesmo que os jornais. Não é o meu estilo.

Já vários jornalistas lhe tentaram fazer perguntas sobre a atualidade, mas diz sempre que não gosta de falar sobre isso.
Não gosto. Disse-lhes que fossem perguntar a um verdadeiro especialista, a uma pessoa que tenha estudado o tema durante 20 anos. Aí é que terão uma ideia “autorizada” sobre o assunto. Neste momento, sou apenas um homem comum, e isso não é muito interessante. Mas, enquanto cidadão, não quer dizer que não atue.

E que não tenha a sua própria opinião sobre o que se passa.
Sim, exatamente. Mas sou um cidadão comum. Porque é que hei de dar o meu ponto de vista de romancista?

Apesar de ser romancista, começou por escrever poesia.
Há muitos, muitos anos!

Porquê é que parou?
Foi de repente, não sei. Lembro-me que estava a passear por Paris, a tirar notas sobre o dia-a-dia que pensei que podiam ser transformadas num poema. Mas, quando cheguei a casa, decidi que ia escrever um grande romance que seria uma mistura de A Montanha Mágica e um romance de John le Carré, como A Toupeira [risos]. Demorei sete anos a escrevê-lo, e durante esses sete anos não escrevi um único poema.

E nunca mais escreveu poesia desde então?
Não, sou editor de uma revista de poesia, [chamada PO&SIE], que é provavelmente a mais importante [em França]. Às vezes faço traduções para a revista, mas nunca mais escrevi poesia. De tempos a tempos, escrevo-a num romance. Apenas uma frase, poesia que passa. Scott Fitzgerald costumava citar John Keats quando falava sobre poesia e prosa, romance e conto. Costumava citar um poema de Keats, “The Eve of St. Agnes”. Apenas uma linha — “The hare limp’d trembling through the frozen grass” –, que pode ser uma frase poética ou de prosa. Já não escrevo poemas, mas espero que, às vezes, apareça algo como uma sombra que passa.