Alguns momentos depois de entrarmos na casa de Pedro Serrazina temos a certeza que é o sítio ideal para se falar sobre a animação que criou para a canção “É Preciso que eu Diminua” de Samuel Úria — do seu mais recente álbum Carga de Ombro. Na sala é bem visível a formação em arquitetura, o aproveitamento do espaço causa inveja e há livros e discos de vinil à volta, a convidar uma fuga dos olhos. E é isso que frequentemente acontece. O espaço bem preenchido e a imensidão de objetos criam uma vontade de bisbilhotar e servem para o realizador falar sobre uma das motivações para aceitar este projeto: “Há uns anos, quando voltei para Lisboa com a minha mulher, por uma série de circunstâncias, começámos a sentir uma necessidade de diminuir, porque estávamos a ficar pesados demais”.

[o novo vídeo de Samuel Úria, realizado por Pedro Serrazina:]

Mas entre o que se acumula podem estar escondidas descobertas preciosas. E é isso que acontece quando Samuel Úria pega numa reedição de Max and Moritz, de Wilhelm Busch, uma história da década de 1860 que mais tarde surgiu de inspiração para Os Sobrinhos do Capitão, de Rudolph Dirks e Harold H. Knerr. Tanto Samuel como Pedro ficam entusiasmados a revisitar as histórias e este último confessa:

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“A primeira vez que vi alguma coisa que me impressionou, ao nível do espaço, foi em ‘Os Sobrinhos do Capitão’. Há uma história em que entram num cubo mágico e são interpelados por umas personagens que não vês, porque são planos, por isso só os consegues ver de um dos lados”.

O espaço e o movimento são muito importantes na interpretação que Pedro Serrazina fez de “É Preciso que Diminua”. Mas primeiro importa saber porque é que Samuel Úria quis um vídeo de animação: “Estava a fazer uma viagem de comboio com o Paulo Salgado, o meu manager, e tanto nós como outras pessoas achavam que eu devia ter uma animação para ‘É Preciso que Diminua’. Nessa viagem estávamos a falar de nomes possíveis, que conseguissem fazer isso e respeitar as nossas limitações e prazos. Estávamos a disparar nomes e ficámos algo desconsolados por não existir alguém que parecesse indicado. E eu estava com o computador aberto com um filme do Pedro Serrazina a passar. Nem sequer tinha sugerido o nome do Pedro porque me parecia impossível. A conversa continua e o Paulo começa-me a falar de alguém que conhecia, que era muito bom, que fazia animações, e foi então que o nome do Pedro surgiu. E eu, em jeito de momento ‘Eureka!’, mostrei-lhe o que estava a ver no computador.”

6 fotos

Pedro Serrazina também teve a sua epifania. O convite surgiu em viagem, numa altura em que o calendário estava preenchido com conferências e a finalização do seu doutoramento. “A minha primeira reação, antes de ler a letra, foi um ‘acho que não dá’. Estava no carro quando recebi a letra da canção e começo a lê-la para a minha mulher e ambos pensámos o mesmo: aquilo era mesmo para mim.” A partir daí é história, entre agosto e setembro o realizador e uma pequena equipa, constituída inicialmente por dois ex-alunos de Pedro (Yue Wang e Gonçalo Encarnação), aos quais se juntaram mais tarde Joana Toste e mais três ex-alunos (João Fortuna, Mariana Amaral e Márcia Maurício) desenvolveram a animação que ilustra o tema.

Aumentar e diminuir

Pedro Serrazina confessa que “não queria ser colonizado pela métrica e ritmo da canção, durante umas semanas não ouvi a canção nem o álbum. A ideia era gerar imagens através do que me está a ser lido, para mim era mais interessante fazer algo que não servisse servilmente a canção”. Começou por esboçar uma série de possibilidades, num caderninho e a desenvolver a ideia de um movimento contínuo e de brincar com a escala:

“As primeiras ideias são, por norma, as mais fortes. Foi isso que aconteceu, desde cedo que não queria abdicar do movimento constante e queria jogar com as escalas, passar a sensação de que às vezes se está a olhar ou que se pode estar ali, no meio daquilo tudo, para o ouvinte, que também está a ver, sentir que está a diminuir ou a aumentar e relacionar-se com o vídeo e a canção. O vídeo tinha de fazer essa proposta de sensações, do contraste, de se sentir num espaço enorme ou de também se estar apertado nesse espaço.”

Pedro quis fugir à ideia do videoclip tradicional: “Há ali momentos em que a canção, num vídeo normal, pede mais. Mas decidi assumir o risco. Num videoclip normal, quando a canção cresce, o vídeo também começa a crescer, a edição a aumentar, mas aqui tentámos desfasar as coisas. O vídeo não procura ilustrar tudo o que está ser dito. A ideia começou a nascer de pequenos esboços da ideia da escala, um corpo que transcende os prédios, e a partir dessa ideia criar uma história própria, que as pessoas pudessem ouvir e ver ao mesmo tempo.”

Missão cumprida

Samuel concorda e assume esse desejo: “Não queria que o Pedro fosse um tarefeiro para traduzir as coisas à minha maneira. Queria que o universo do Pedro florescesse ali, com o universo e as imagens que lhe são características, o lado arquitetural muito forte e até o preto e branco, que corta algum adocicado colorido que a canção possa ter, ou lembrar, poderia ser uma complementaridade, por não estar sempre a harmonizar. Dei essa liberdade ao Pedro e ele acabou por arranjar uma maneira muito inteligente de interpretar e dar a interpretar a canção, através da ideia de aumentar o espaço e do espaço aprisionar e também criar uma sensação de libertação. E isso joga com o lado mais libertador e estereofónico da canção.”

Pedro Serrazina e Samuel Úria

O resultado ilustra bem a canção de Samuel Úria e cria simultaneamente uma história que é independente do tema. Era esse o desejo de ambos os artistas. Por isso, missão cumprida. Melhor que isso, há uma felicidade latente por terem trabalhado juntos, Pedro sorri quando diz: “Permitiu-me renovar o prazer do desenho sem ter que ser eu a reconstruir o meu universo. Permitiu-me expandir o meu universo para o universo de outro criador. Eu vejo isto como o universo dele, há um certo distanciamento, claro, eu vejo que isto é meu, mas que não é só meu. E por vezes penso: ‘aquela cena do Samuel ficou ali bem’”.