Para minha grande angústia – e iminente queda no vórtex da certeza que também eu um dia irei morrer -, eu trabalho com algumas pessoas nascidas na década de 90. É uma dor lancinante na alma ter de lhes explicar o quão bem me lembro de viver sem Internet ou que em tempos o Manuel Luís Goucha usava bigode e fazia programas para gaiatos com um Sebastião Come Tudo.

Mas é também uma experiência laboratorial sobre o que sobrevive ou não ao declive geracional – sobretudo no que diz respeito aos êxitos pop que eclodiram exatamente nos anos 90, embrião para a rapidez fugaz de fenómenos que em 2016 são um dado adquirido. Serve isto para dizer que uma colega mirim esteve no outro dia horas no YouTube a ver documentários sobre a vida e obra das Spice Girls – incluindo as teorias dignas de “o 11 de setembro foi um inside job” sobre os verdadeiros motivos da Ginger Spice. Até o filme Spice World marchou, apesar de não ser domingo à tarde e ela não estar, pareceu-me, de ressaca.

Não é caso isolado. Simplistamente, mencionar o tema “Wannabe” é uma cápsula de alegria automática, mesmo para pessoas com idades inomináveis em 1996. Na altura eu era uma adolescente amplamente entusiasta da britpop. Foi para mim o que para outros foi o grunge, e isso deu-me uma espécie de carta-branca para abraçar o destrambelhanço “so very british” das Spice Girls – que fui, inclusivamente, ver ao vivo na inauguração da extinta Virgin Megastore de Lisboa, nos idos de novembro de 1996. E “ver” é o verbo possível, já que aguentei horas de empurrões para assistir a um playback de Victoria Adams (hoje Beckham) , Melanie Brown, Melanie Chisholm, Geri Halliwell e Emma Bunton.

Spice, o primeiro álbum das Spice Girls, faz esta sexta-feira 20 anos (se tivermos em conta o lançamento no seu país natal, que no Japão já tinha visto a luz do dia, porque os japoneses têm um dedinho para fenómenos mundiais). Permanece, até hoje, um caso de sucesso que só rivaliza com os Beatles. Numa década infestada de boy band e da ocasional girl band, as Garotas Piri Piri fizeram história. E porquê? Porque na sua génese são mais punk do que pop.

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Esta ligação ao punk soa bizarra se tivermos em conta que a banda resulta de um casting a mais de 400 raparigas até encontrar aquelas que mais agradaram à Heart Management. O nome original do grupo era Touch e tentava emular o fenómeno sexy dos coletivos R&B de miúdas americanas. Mas a suavidade do R&B não se coadunava com estas miúdas que aparecem nas primeiras entrevistas a mascar pastilha de boca aberta e a fazer piadas sobre mamilos com um sotaque suburbano cerradíssimo. Barulhentas, energéticas e um bocado caóticas, dificilmente podiam ter sido apresentadas por um melhor single do que por “Wannabe”, uma salada russa de estilos e letra desconexa que nos mete a gritar zigazig-ah sem fazermos puto de ideia do que isso quer dizer.

Talvez por isso, cedo optaram por mandar os managers à fava e fazerem o seu próprio caminho. Era o “Girl Power” a eclodir e a assustar todos os machos alfas em seu redor. “Eu sentia-me muito intimidado por elas e disse que era boa ideia escreverem alguma coisa sobre isso”, desabafou o produtor Richard Stannard.

“Wannabe”, o tema de arranque de Spice, foi escrito e gravado em quatro horas e reúne algumas das private jokes que os elementos da banda trocavam entre si, depois de um ano a morarem juntas e a ensaiarem com o afinco de uma ginasta soviética. Hoje em dia tem quase 204 milhões de visualizações no YouTube, o que prova que a canção não caiu no esquecimento – assim como a estética a ele associada, com cada rapariga tão diferente que tinha direito a uma alcunha (dada por um jornalista que não estava para decorar o nome de cantoras que estava convicto serem apenas one hit wonders). Antes de as raparigas discutirem “que personagem do Sexo E A Cidade sou eu?”, tiveram de tomar a difícil decisão “que Spice Girl sou eu?” (se estiverem a morrer de curiosidade: eu era a Sporty Spice, o que é irónico tendo em conta que tenho medo de espaldares e desportos coletivos. Mas enfim, era eu que tinha o casaco da Adidas.).

Uma das coisas que distingue este tema dos outros de diferentes girl bands é que não é uma canção sobre rapazes. É dirigida a um rapaz, mas para lhe explicar que ele só terá hipóteses se passar no crivo das amigas. Começa aí o tal Girl Power que se tornou em bordão nos anos 90 e que sobrevive até hoje: ainda este ano foi lançada uma nova versão do videoclipe, por iniciativa das Nações Unidas, que mostra o que é que as mulheres “really, really want”: igualdade de género.

O fenómeno causado pelo lançamento de Spice tornou-as numa das maiores exportações do Reino Unido, com direito a anúncios à Pepsi, à Pollaroid, a batatas fritas e a retroescavadoras industriais (uma das coisas nesta lista é mentira, mas podia ser verdade tendo em conta o merchandising insano em torno das cinco protagonistas). A isto acrescente-se, em abono da verdade, que nenhuma das Spice Girls era uma cantora inspirada.

Quanto aos passos de dança, até eu com o meu excesso de peso conseguia fazer aquilo. Mas tinham outra coisa que faltava nas bandas do género: espontaneidade. Maluquice, até. O grupo gostava tão pouco de ser controlado que fugiu do seu primeiro manager durante a noite e despediu o segundo durante uma tour mundial. Ficaram as suas próprias agentes, algo que Geri Halliwell descreve como “uma criança de seis anos a conduzir um camião”.

Apesar de “Spice” marcar o início de um contrato de cinco discos, a banda começou a implodir logo ao fim do segundo. As tensões com Mel B levaram Geri a deixar o grupo em 1998, causando na opinião pública choradeiras ao nível da morte da Princesa Diana. Em causa estaria o destaque que a Ginger Spice começava a ter, devidamente encavalitado no impacto que causou nos Brit Awards por aparecer com um hoje icónico vestido com a bandeira Union Jake (vestido esse feito à pressa de panos da loiça daquelas lojas para turistas. Lá está: punk.). Os elementos restantes ainda tentaram continuar com aquele cliché do “mais fortes que nunca” e a fazer por sorrir – no programa de Jay Leno contaram a piada “qual é a diferença entre as Spice Girls e um caril indiano? É que um caril indiano tem Ginger (gengibre)”. Mesmo assim, as moças de fraca voz voltaram a mostrar que o que as distingue é a lata e gravaram um dueto com esse colosso do canto que era Pavarotti, sem medo de comparações. Se isto não é tê-los no sítio, não sei o que seja.

Em 2007 ensaiaram um regresso, com espetáculos lotados e um single, “Headlines”, que foi um flop. A balada soava mais normalizada, sem (desculpem o trocadilho péssimo) o tempero adequado. Foi sol de pouca dura. Em 2012 reuniram-se de novo para o fecho dos Jogos Olímpicos de Londres, uma ode à identidade britânica da qual não podiam ficar de fora. Em 2016, a bolsa de apostas mantém-se: voltam (outra vez) ou não? A resposta, por agora, fica-se num enigmático zigazig-ah.

Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa