No início, Hillary Clinton entrou comovida e humilde a dirigir mil obrigados antes de começar a falar. “Thank you”. “Thank you all”, repetiu dezenas de vezes, acrescentando aqui e ali nuances de afeto, quase ao estilo de Obama: “I love you all” (em português: Adoro-vos a todos”). No fim do discurso, Hillary deu um beijo discreto a Bill Clinton e foi abraçar familiares e apoiantes. Pelo meio, entre vários aplausos, teve um discurso na linha do que Donald Trump fez dez horas antes: no day after, é tempo de unir as duas Américas e isso só é possível dando uma “oportunidade” a Trump. Mesmo que a derrota seja, como admitiu, “dolorosa”.

Trump é agora o Presidente de todos. Também de Hillary

Hillary parece empenhada em amenizar o fosso criado entra as “duas Américas” que ainda se bipolarizaram mais com a renhida campanha. Pediu aos seus apoiantes que dessem uma “oportunidade” a Donald Trump e que olhassem o novo Presidente com abertura de espírito.

Temos de aceitar este resultado e olhar para o futuro. Donald Trump vai ser o nosso Presidente, devemos dar-lhe a oportunidade e ter a abertura suficiente para que possa liderar a nossa democracia constitucional. Isto ser pacífico é também estarmos a defender o Estado de direito.”

Num apelo aos seus apoiantes, Hillary destacou: a “democracia constitucional exige a nossa participação todos os dias e não só de quatro em quatro anos.” Naquilo que pode ser entendido como um recado a Trump, Hillary pediu também aos democratas para ajudarem a “fazer os possíveis” para que a “democracia seja mais abrangente e não apenas para alguns.” Aqui, entrou no discurso da justiça social, que caracteriza os democratas e que marcou a era Obama (com planos como o Obamacare).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

E ensaiou ainda mais recados ao novo Presidente dos EUA. Hillary pegou no slogan de Trump — que promete tornar a “América grande novamente” — para apelar que os americanos que “em conjunto proclamem a necessidade da América ser grande suficiente para acolher todos independentemente do género, da raça, da cor, da idade, de terem deficiências”. E rematou:

O sonho americano é para todos”.

A candidata derrotada nas eleições diz que é também dos que votaram nela a “responsabilidade como cidadãos de continuarmos a fazer a nossa parte para construir essa América mais justa e mais forte. E sei que assim o farão.” A própria já deu o exemplo. Contou que ligou a Donald Trump e que do outro lado da linha recebeu um apelo para que trabalhassem “em conjunto em nome do país”. Com estes dois discursos, Trump e Hillary já o estão a fazer. E deixou um desejo: “Espero que Trump seja um Presidente bem sucedido de todos os americanos (…), os nossos melhores dias estão ainda à nossa frente. Acredito que somos mais fortes juntos e iremos em frente juntos.”

Kaine, com o mundo democrata a seus pés

Hillary Clinton tentou ainda, de forma subtil, lançar o seu candidato a vice-presidente como um nome a ter em conta no mundo democrata, dizendo claramente: contem com ele. Primeiro, Hillary destacou que a campanha “nunca foi sobre uma pessoa ou uma eleição, mas sobre o país que amamos, e a construção da América de uma forma abrangente”. Mas guardou um grande agradecimento para Tim Kaine, dizendo-se esperançada por — ao contrário dela — o seu candidato a vice-presidente continuar nas lides do combate político.

“Tenho grande esperança e conforto em saber que o Tim vai permanecer na linha da frente da nossa democracia”, começou por dizer, lembrando que irá a representar o Estado da Virgínia, como governador. Este foi um dos Estados que esteve complicado durante a noite eleitoral, mas acabou por cair para os democratas. Uma derrota na Virgínia, encurtaria (e muito) as ambições futuras de Tim Kaine. Tendo ganho, passa a ser um dos nomes a ter em conta na cúpula democrata (quem sabe se para a Casa Branca).

Outro nome pelo qual o eleitorado democrata suspira é o de Michelle Obama. E aqui há uma particularidade no discurso de Hillary: agradeceu sempre aos Obama como casal. E não apenas a Barack.

Barack e Michelle Obama, o nosso país tem uma enorme dívida de gratidão para convosco. Agradecemos-vos pela vossa liderança determinada e graciosa, com tanto significado para tantos americanos e povos por esse mundo fora.”

Há duas leituras para esta passagem do discurso: a valorização do papel da mulher (neste caso de Michelle, na Administração Obama nos últimos oito anos), mas também o facto de Clinton a ter citado logo a seguir a Kaine. Será mais uma dica para 2020 ou 2024? É que, no mesmo discurso, Hillary dirigiu-se às mulheres para dizer que — apesar desta derrota — pode haver uma presidente dos EUA “mais cedo do que pensamos”. Estaria a pensar em Michelle?

Os fracassos dolorosos

Hillary dirigiu-se aos jovens para dizer que também ela, ao longa da vida, teve “sucessos e fracassos, alguns bem dolorosos, por isso tenho de dizer-vos, a muitos de vocês que estão no início das vossas carreiras profissionais ou políticas, para que nunca deixem de acreditar e lutar por aquilo que acreditam que vale a pena”.

Agradeceu, também, a “toda a família”, lembrando a forma como os Clinton se envolveram nesta campanha, com sacrifício de todos. Um dos momentos mais difíceis do percurso na vida pública de Hillary foi, aliás, o caso Lewinsky, mas nem isso fez com que deixasse Bill, que foi um dos pilares da sua campanha. Nesta manhã nos EUA (tarde em Portugal), Bill teve direito a um beijo discreto no fim do discurso. Foi uma campanha “Billary”, como em tempos os opositores chegaram a acusar, mas isso não é nada que envergonhe Hillary.

Um dia uma mulher vai ser Presidente. Palavra de Hillary

Numa parte final, virada para as apoiantes femininas, Hillary quis deixar um sinal: a hipótese de uma mulher ser presidente dos EUA não termina aqui. “Não desistam”. A candidata democrata fez um apelo:

A todas as mulheres que depositaram fé nesta campanha, nada me fez mais orgulhosa do que lutar por vocês. Sei que ainda não quebrámos o telhado de vidro, mas um dia iremos consegui-lo e espero que mais cedo do que pensamos.

O “mais cedo do que pensamos” pode ser um sinal de que Michelle poderia ser uma hipótese no futuro para os democratas, como tantas vezes foi sugerido durante o período de campanha eleitoral. Dirigindo-se às jovens mulheres, Hillary pede que “nunca duvidem que temos valor e poder, e que merecem todas as oportunidades do mundo para pensarem os vossos sonhos.”