E se este romance se chamasse Norwegian Woods? Mais, se desse pelo nome de Jardins à Chuva? Não, não sou eu a efabular, acreditem. A verdade é que o mítico romance de Murakami poderia ter tido o título de Norwegian Woods, com o “esse” final, respeitando o original japonês: Noruwei no mori. Pois é, desde sempre que os japoneses traduziram assim a canção dos quatro fabulosos rapazes de Liverpool, interpretada por John Lennon com a sua voz vagamente nasalada. No que toca aos jardins à chuva, trata-se de uma referência musical à toccata de Debussy, “Jardins sous la pluie”. E pensar que a dita peça nem sequer chegou a ser referida na versão final do romance!

Em Ouve a Canção do Vento − o primeiro romance do japonês, editado este ano pela Casa das Letras juntamente com Flíper, 1973, o segundo do rol −, pela voz do narrador, Haruki Murakami dá a entender que nem morto escreverá sobre sexo… perdão, nem sobre a morte. Antes dele, Kenzaburō Ōe fizera-o magistralmente. Além disso, Murakami tencionava explorar outros terrenos. Afinal, à quinta (obra), foi de vez. O meu japonês atirou-se de cabeça aos temas proibidos. Há cenas de sexo, há mais palavrões, há amores ilícitos e a ameaça de um ménage à trois… Enfim, é a revolução no tempo das revoluções. Norwegian Wood tornou-se um dos romances mais populares de sempre. E também o romance mais vendido fora do Japão. Porquê? É ler para crer.

A música das palavras

Devorei o livro em inglês. E não, nunca li a tradução de Alberto Gomes (Civilização Editora). Adianto que essa edição saiu quase ao mesmo tempo que Sputnik, Meu Amor (Editorial Notícias), traduzido por mim. Porquê? Na altura, não estava para aí virada; depois, passei estes anos a traduzir Murakami: caso não saibam, a vida de um(a) tradutor(a) não dá tréguas − os projetos aparecem de enfiada, formando uma corrente de livros. Falo de mim, naturalmente, que trabalho com excelentes editoras, a todos os títulos. Resultado: de Murakami em Murakami (trato os romances dele por tu, admito), lá fui lendo, sempre em inglês, as ficções, entre romances, contos e um livrinho de pendor autobiográfico, que me couberam em sorte. Contei ainda com a ajuda preciosa dos tradutores de várias nacionalidades, bem como da minha amiga Anna Zielinska-Elliott, tradutora polaca do autor. Quando a Marta Ramires me contou que estava a negociar os direitos de Norwegian Wood, delirei. Ia finalmente traduzir o romance que me faltava. Chegada a hora da verdade, achei por bem não consultar a tradução anterior. Assim, posso afirmar de ciência certa que traduzi o romance sem o ter lido em língua portuguesa.

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“Situei ‘Norwegian Wood’ nos finais da década de 1960”, referiu o escritor japonês no decorrer de uma palestra. “Fui buscar os detalhes do quotidiano do protagonista aos tempos da minha vida académica. Em resultado disso, muita gente pensa que se trata de um romance autobiográfico, mas está longe de o ser. A minha juventude foi muito menos dramática e bastante mais monótona”, assevera Murakami. Apesar de tudo, convenhamos, o romance tem o seu quê de autobiográfico. As descrições no dormitório coletivo, a vida noturna numa Tóquio efervescente, ajudam a enquadrar parte do percurso do autor, no decorrer dos turbulentos anos marcados pelo movimento de contestação estudantil às instituições académicas e, no fundo, ao sistema, que tiveram o epicentro em terras de França nos idos de maio de 68. Faz amor e não a guerra, n’est-ce pas? Haruki, tal como Tōru, é oriundo de Kōbe. A universidade que ele frequentou no romance poderia ser a Universidade de Waseda, onde estudaram Haruki e a sua mulher, Yōko. Tal como Jay Rubin assinalou em Haruki Murakami and the Music of Words, mais importante do que estabelecer o paralelismo dos factos é a estratégia narrativa. Tōru é apresentado aos leitores como um amigo do peito, o que contribui para intensificar a impressão de sinceridade.

haruki and the music of words

“Haruki Murakami and the Music of Words”, livro de Jay Rubin

Norwegian Wood, à imagem de Kafka à Beira-Mar, é uma história de aprendizagem. Um romance de formação exemplar, aos meus olhos. Começa da melhor maneira, com uma espécie de epifania. Tōru Watanabe, de 37 anos, está prestes a aterrar no aeroporto de Hamburgo quando lhe chega aos ouvidos o tema que dá título ao livro. De olhos postos nas densas nuvens carregadas de chuva, pensa no que deixou para trás. Nos amigos que ficaram pelo caminho, nos sentimentos que nunca mais voltam. Tendo como fio condutor a nostalgia, “o relato é uma reflexão apaixonada e melancólica sobre a vida, sobre o amor e o desamor, e, acima de tudo, sobre a perda”, escreve Justo Sotelo em Los Mundos de Haruki Murakami (Izana Editores).

Tōru Watanabe faz lembrar Kafka Tamura, que, por seu turno, nos traz à memória o Holden Caulfield criado por Salinger. “Tens uma maneira esquisita de falar”, diz Reiko a Tōru, a páginas tantas. “Não andarás por acaso a imitar a personagem daquele rapaz, Holden Caulfield, no romance ‘À Espera no Centeio’?” O rapaz Watanabe responde-lhe que longe dele essa ideia, soltando uma gargalhada.

Logo no início, o herói da história deixa bem claro que, ao arrepio do que fazem os seus colegas que frequentam a mesma faculdade e que andam carregados com os romances de Kenzaburō Ōe, Yukio Mishima ou Kazumi Takahashi. Pela sua parte, prefere livros de Fitzgerald, Updike, Capote e Carver. Atenção, não leiam nesta shortlist um julgamento de valor necessariamente castigador. Murakami leu os clássicos japoneses e os seus livros estão repletos de sugestivas imagens e ideias rocambolescas made in Japan. Trata-se, tão-só, de marcar posição. Murakami e Watanabe afirmam, a uma voz, a sua diferença no meio da massa anónima e coletiva.

Sozinhos em Tóquio

As personagens que deambulam por Norwegian Wood, à semelhança das que povoam os restantes romances, formam um impressivo e impressionante retrato de solidão, fazendo-me lembrar os quadros de Hopper. Figuras que atravessam o cruzamento Hachiko, no coração da cidade de Tóquio, parecem sardinhas em lata nos comboios à hora de ponta, fumam compulsivamente e frequentam lojas de discos (e livrarias) e de conveniência quando precisam de pão para a boca e alimento para o espírito.

Temas como o desaparecimento da juventude, a importância do amor e do sexo – sobretudo a ausência de uma e outra coisa –, desde a entrada na universidade, passando pela vida de todos os dias nas residências universitárias e a acabar no ofício e labor das várias personagens. Leram O Romance do Genji (Genji Monogatari)? Há raízes profundas e símbolos universais que vale a pena (re)descobrir, sem esquecer um dos mistérios da cultura nipónica: a tendência secular para o suicídio. Desde o momento em que o romance foi lançado, a juventude japonesa identificou-se com a indiferença existencial do protagonista.

romance do genji

“O Romance do Genji”, de Murasaki Shikibu (Relógio D’Água)

Aquando da sua publicação, O Grande Gatsby, livro amplamente citado em Norwegian Wood (“desmotivado, continuei a frequentar a faculdade, a trabalhar na loja de discos três vezes por semana, a reler O Grande Gatsby sempre que podia”) obteve críticas boas e más e vendeu pouco. F. Scott Fitzgerald escreveu o romance apostado em produzir, nas suas palavras, «algo inovador, extraordinário, belo, simples, mas com uma trama intrincada», e morreu a pensar que a obra se revelara um fracasso. Publicado no Japão em 1987, Norwegian Wood recebeu excelentes críticas e vendeu muito. Palpita-me que, a propósito deste romance que mudou o modo de ler Murakami, o nosso japonês poderia ter dito precisamente as mesmas palavras. De que falamos quando falamos de Norwegian Wood? De uma obra nova, extraordinária, bela e inovadora. Juro que traduzi este livro ao som dos Beatles, com um sorriso de orelha a orelha. Onde é que eu já li isto?*

[*Crónica escrita a ouvir os Beatles de uma ponta à outra, começando em “Norwegian Wood” e a acabar em “Hello, Goodbye”]

Maria João Lourenço é tradutora