A noite não era só de Sporting-Real Madrid. Também era de Sporting-Real Madrid-The Cure. Ontem as três formações desceram ao terreno de jogo por volta da mesma hora. Antes da partida começar, os fãs cureanos que rodeavam o Meo Arena tinham a mesma devoção que os adeptos futebolísticos. Quando o espectáculo estava prestes a começar invadiram todos os recantos do espaço, da plateia aos balcões, entoando alguns cânticos da equipa que iria revelar a experiência do seu toque de bola durante três horas — que podiam ter sido dez. A comparação desportiva faz sentido: Robert Smith, em rapaz, jogava futebol e provavelmente foram as múltiplas caneladas que o levaram a compor “Boys Don’t Cry”.
No público havia muita gente acima dos 40 mas também alguma miudagem. Portugueses, espanhóis e franceses. Desde seguidores vestidos de negro a casais de betinhos que ouviam “Friday I’m In Love” nas noites da danceteria Plateau. Olhando os alternativos mais velhos, podia fantasiar-se com uma reunião da tribo que habitava, nos anos 80, os pregões do Blitz, onde se cruzavam mimos musicais e sentimentais (“vi- te com uma T-shirt dos Jesus and Mary Chain no metro de Arroios e desde essa altura nunca mais te esqueci”) que terminavam com magnos e inquestionáveis conselhos como “curtam Cure, Bauhaus e Mission”.
Mas vamos ao concerto de uma banda com 37 anos que, apesar do pacote vasto de depressões e adicções, e de múltiplas substituições de elementos, mantém-se e consegue recriar ao vivo o seu reportório de muitas tonalidades com uma qualidade que nada deve à que demonstrou por exemplo em 1989 no mais do que mítico concerto de Alvalade. As canções foram-se desenrolando como se fossem novíssimos tapetes e, cedo, foram usadas cartadas que começaram a aquecer os crentes, como o romântico “All I Want”, de Kiss Me Kiss Me Kiss Me, e o épico corridinho de guitarra e baixo “Push”, de “The Head On The Door.
Smith e amigos não estavam ali para contrariar as expectativas de quem queria ouvir canções reconhecíveis e cantaroláveis. Com raras opções menos óbvias, trouxeram para o palco o saco de um “Best Of” que continua a impressionar os melómanos cidadãos. Não muito mais tarde, desceu à Terra o ultra-romântico “Pictures of You”, minutos depois complementado por “Love Song”, ambos dedicados à moça com quem começou a namorar em tempo liceal e é hoje a sua mulher (desde 1988).
Esse dado revelador da estabilidade emocional de Smith é admirável para uma estrela sombria que muitos achavam que não iria sobreviver a Pornography, de 1982, álbum no qual revelava a sua raivosa desistência em relação à vida. Foi por essa altura que Smith e o baixista — sempre em movimento — Simon Gallup andaram à pancada, o que torna comovente vê-los, hoje, cúmplices, em tabelinhas constantes.
Regressemos ao palco e à sua sequência de canções. Chegaram de ternos jardins ingleses as muito aguardadas “Just Like Heaven” e “Boys Don’t Cry” e esse hino de fantasmagórico de mato, “The Forest”, acompanhado de braços no ar e palmas entusiasmadas. Houve encores vários, programados, sim, mas sempre oportunos. Os The Cure ganharam o jogo, com fair play e generosidade. Quiseram que os fãs levassem para casa o que estavam à espera. E o anfitrião, amável, falou mais do que uma vez com os devotos. É dose para repetir, sim.
[notícia corrigida às 16h40: os The Cure tocaram no antigo estádio de Alvalade em 1989 e não em 1987]