Título: “O Que Não é Teu Não é Teu”
Autor: Helen Oyeyemi
Editor: Elsinore
Páginas: 288
Preço: 18,79€

O Que Não é Teu Não é Teu

Logo no princípio de “Uma Breve História da Sociedade das Jovens Feias”, o melhor conto de O Que Não é Teu Não é Teu, Willa Reid incentiva Dayang Sheriff a escrever um pedido de admissão à referida sociedade que seja o mais bigarrure (a palavra francesa para uma mistura de cores que crie um padrão variado e cheio de contrastes) possível. No entanto, é Helen Oyeyemi, mais do que a própria Dayang, quem parece acatar este conselho.

No seu primeiro livro de contos, a escritora britânica constrói nove narrativas que impressionam e cativam o leitor mais pela vertigem do que pelo talento. As histórias saltam rapidamente de um foco para o outro, de uma personagem para outra, sem que consigamos ter tempo para respirar ou perceber o que acabou de acontecer. Oyeyemi vai-nos arremessando a grande velocidade diferentes personagens que nos retira da frente sem que tenhamos tempo para perceber o que se passou com elas, afastando-as depois num vago e fantástico nevoeiro que nos deixa, acima de tudo, confusos e que cria sempre a impressão de que a própria escritora não teve a paciência necessária para continuar aquilo que começara.

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Helen Oyeyemi é, portanto, uma curiosa mistura de Kafka e Usain Bolt, uma vez que aquilo que o escritor checo obtém nas suas obras através de puro virtuosismo, a jovem escritora atinge através de acelerações e alterações súbitas de foco, não surpreendendo por isso que, numa recente entrevista à Well Read, a primeira expressão que tenha vindo à cabeça de Oyeyemi para descrever o seu processo criativo neste livro seja precisamente “escrita automática”.

Tudo o que se afirma acima talvez possa ser melhor compreendido se prestarmos atenção ao mais longo conto do livro, onde encontramos todos os traços característicos de O Que Não é Teu Não é Teu, desde a inclusão de personagens com etnias e orientações sexuais diferentes à mistura do universo dos contos de fadas com uma atmosfera absolutamente moderna (por vezes feita de forma demasiado previsível mas em alguns momentos com muito mérito, como acontece na cena entre o lobo mau e o capuchinho vermelho em Dornicka e a Pata do dia de São Martinho), passando ainda pela referência a chaves e marionetas, o leitmotiv da obra.

Em “O Teu Sangue é Assim Tão Vermelho?”, Oyeyemi consegue, ao contar a história de uma escola de marionetas, criar um universo em que homens e fantoches são indistinguíveis, tal como são indistinguíveis neste conto (e em todos os outros) relações homossexuais de relações heterossexuais, nascendo assim um universo ao mesmo tempo fantástico e contemporâneo. No entanto, quando entramos de repente na parte conto de fadas da narrativa, abandonamos de forma inesperada o que nos estava a ser contado para entrarmos numa nova história, que partilha com a anterior apenas os nomes das personagens, deixando-se estático o que ficou para trás, o que retira qualquer possibilidade de unidade ou sentido ao conto que estamos a ler.

Tal como no antepenúltimo conto do livro, em que Freddy Barandon decide, aparentemente sem qualquer motivo, separar um casal, indo constantemente alterando os seus planos sem que estes tenham falhado ou sequer tido uma conclusão, tal como em Presença, em que é sempre meio-dia e meio e está sempre frio sem que percebamos porquê, em “O Teu Sangue Não é Vermelho”, Myrna Semyonova ganha nas páginas finais do conto, insuspeitadamente e com efeitos retroactivos, o super-poder de consolar as pessoas em que toca e o infra-poder de não ter qualquer sensação táctil ao fazê-lo.

É também curioso reparar que neste conto a jovem escritora parece tentar construir, a partir das marionetas, uma alegoria para o processo criativo que talvez traga uma nova luz aos problemas acima introduzidos, alegoria essa para a qual a própria escritora aponta na entrevista acima citada. Na escola de marionetas, existem três formas de ligação entre pupilo e boneco que aparentam corresponder a três maneiras de encarar a escrita. No início do conto, quando Myrna pega no fantoche de Radha para lhe ensinar alguns truques de ventriloquismo, a aprendiz repara que Myrna não inventou “uma voz nem uma história para o fantoche, mas que [se tornou] na sua voz e na sua história” (página 100). Neste primeiro caso, a teoria sugerida por Oyeyemi é a de que a obra (seja um livro ou um espectáculo de fantoches) é criada a partir do seu criador, moldando-se a este.

Pouco mais à frente, numa audição para entrar na escola, Radha vê-se impedida de fazer o seu número porque a sua marioneta “fez uma tentativa hesitante de comer um cubo de açúcar que estava numa taça deixada em cima de uma mesa, desesperou e tentou dormir” (página 105). Helen Oyeyemi está assim a sugerir que o marionetista, tomado por um qualquer furor divino, controla a marioneta obedecendo à vontade desta. Finalmente, quase no fim do conto, Rowan Wayland, a marioneta, vagueia pela cidade sem qualquer marionetista a controlá-lo, sendo portanto a marioneta (e por extensão o livro) um acontecimento independente do escritor.

Apesar de apresentar estas três teorias, Oyeyemi hesita apenas entre definir-se como uma escritora do segundo ou do terceiro tipo, sendo desta forma os livros uma coisa que lhe acontece e não uma coisa que cria, o que torna obsoleto o trabalho de um crítico, uma vez que é absurdo avaliarmos criticamente um livro que aconteceu a um escritor, tal como seria absurdo discutir as virtudes de uma pedra ou classificar um surto psicótico de zero a vinte.

O Que Não é Teu Não é Teu torna evidentes as capacidades literárias de Oyeyemi enquanto escritora, que não podem ser negadas, mas acima de tudo transporta o leitor para um ambiente vago e incompreensível, povoado de minorias e criaturas fantásticas (sobre as quais Oyeyemi garante não ter qualquer controlo mas a quem manifestamente quer dar voz) que colocam a romancista muito mais perto de um dia vir a ganhar um Nobel do que de se tornar numa grande escritora.

João Pedro Vala é aluno de doutoramento do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa.