Durante parte considerável da década de 80, muito antes da omnipresença da programação infantil do Canal Panda, sempre que eu queria ver os desenhos animados na RTP 2 tinha de esperar pacientemente pelo seu horário exacto. Invariavelmente, ligava o televisor antes do tempo — com a falta de pachorra que se conhece nas crianças de cinco anos (e de 35 também) — e era forçada a levar com “Sons And Daughters”, uma tenebrosa telenovela australiana, com um genérico digno de Guantanamo, que durou uns intermináveis 972 episódios. É o meu primeiro trauma televisivo, um empata-coisas-que-não-posso-aqui-escrever, e talvez por isso lido muito mal com séries com milhentos episódios e outras tantas repetições, daquelas que parecem carrinhos de choque que nos abalroam constantemente durante o zapping.

Isto explica, pelo menos na minha cabeça, porque nunca vi o “Gilmore Girls”, série que durou de 2000 a 2007 e que agora regressa ao Netflix em formato mini de quatro episódios. Terá sido dos programas com as quais o meu comando se esbarrou mais vezes, dando-me sempre a entender que era uma imensa telenovela onde personagens chatas fazem coisas chatas e depois repetem-nas com variações ainda mais chatas. Isto apesar de ter “apenas” 154 episódios e não os tais 972 que ainda hoje me dão pesadelos.

“Gilmore Girls” tem a aura das chamadas “séries de gaja”, apesar de várias pessoas me garantirem que é muito mais que isso, sobretudo por causa do sarcasmo dos diálogos. Talvez isso explique os seus 8.1 pontos (em dez) no portal IMDB – estão por exemplo em clara vantagem em relação a vários programas da mesma era e teoricamente para o mesmo público-alvo, como “Donas de Casa Desesperadas” (com 7.5), “Will And Grace” (7.2), “Brothers And Sisters” (7.3) e até “Sexo E A Cidade” (apenas nos 7.0).

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Eu nunca vi o “Gilmore Girls”, mas tenho aqui de atirar para a fogueira o meu cônjuge: ele, um engenheiro informático minhoto que conta uma T-shirt de um loja de desporto como “roupa formal”, viu a tal série de gaja. Descobri quando, depois da notícia dos novos episódios, ele se mostrou entusiasmado com o regresso perante a minha granítica indiferença. “Até é giro”, justificou envergonhado quando percebeu que estava sozinho no visionamento de episódios passados, antes de ir fazer algo muito macho, como cortar madeira em tronco nu. “Ah, eu só vi porque foi quando comecei a ter televisão por cabo”, acrescentou enquanto acendia um fósforo na barba.

Estava portanto encontrado o meu cicerone para o mundo das “Gilmore Girls”. A ideia de ver uma série americana que faz as vezes de uma telenovela espirituosa é-me menos estranha agora do que no romper dos anos 2000 (com a idade adulta o escapismo faz-me mais falta), se bem que prefiro a desconstrução assumidamente cómica do formato – recomendo o grau de demência e auto ironia de “Jane The Virgin” e “Crazy Ex-Girlfriend”, ambas produtos do cinismo dos millenials.

Escolhemos, claro, o primeiro episódio da primeira série, o chamado piloto. O primeiro comentário: “é estranho ter acompanhado isto mais ou menos da idade da miúda e agora rever sendo já da idade da mãe”. Rever uma série dez anos depois obriga-nos a mudar a tão confortável e doce perspectiva original que nos fez ficar fãs. Lembrei-me de como adorava o Alf em cachopa e de como o detestei quando o revi e temi o pior pelo meu companheiro de sofá.

Desde o primeiro instante que o episódio (estreado em 2000, apesar de uma faixa na escola de uma das protagonistas falar do ano lectivo 98/99) tresanda ainda a anos 90: os The La’s, que foram relevantes na História da música durante aproximadamente um quarto de hora, irrompem com “There She Goes” ainda antes de alguém ter aberto a boca. A música é uma constante na série, assim como outras referências de cultura pop, o que transforma as temporadas originais de “Gilmore Girls” numa espécie de cápsula do tempo. Neste piloto, serviu para recordar que o primeiro CD da Macy Gray, que a filha Rory tem no quarto, era de facto melhor que eu me lembrava.

Segunda ressalva do meu orientador de visionamento: elas falam sempre muito depressa. Eu, fã confessa do guionista Aaron Sorkin, reconheci a velocidade vertiginosa do discurso que estava habituada a ver em “West Wing” ou no filme “Social Network” – mas a criadora de “Gilmore Girls”, Amy Shearman-Palladino, transplanta-a da sala oval e dos corredores de Harvard para uma pequena vila em Connecticut. É irónico ver uma guionista de um programa apenas com protagonistas femininas a “roubar” as técnicas de Sorkin, já que o Oscarizado autor tem fama de não saber escrever para personagens mulheres.

Os diálogos parecem caramelos recheados: trazem sempre mais qualquer coisa lá dentro. É como se conversassem em código e cada frase tivesse de ter várias camadas, entre o significado puro e duro que faz a história andar para a frente, a graçola, o forçar as características da personagem. É tudo muito rápido, quase difícil de acompanhar para quem ainda só se está a ambientar.

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“E este aqui, vai ser namorado dela? E agora, vamos descobrir que o pai é rico, né?”, pergunto. O meu marido tem receio de responder e spoilar-me o episódio, mas a verdade é que as piruetas que “Gilmore Girls” faz com os diálogos acabam por se traduzir num plot muito simples e sem grandes surpresas. Sim, ele gosta dela e vão ser namorados. Sim, o pai é cheio de papel. O argumento é simples, mas de uma série que apela ao feel good não se espera mais que isto: uma mulher que foi mãe aos 16 anos, saiu da casa da família abastada para ser dona da sua própria vida, vê-se agora obrigada a uma reaproximação para dar um futuro melhor à filha.

“As explicações são um bocado mais forçadas do que aquilo que eu me lembrava”, critica o cicerone. Os primeiros episódios são mesmo assim, com demasiado para contextualizar. Não se espere deste nenhum twist nem volte-face maluco, apenas competência qb para atalhar caminho e tentar logo que o público cause empatia com as personagens. A história não é o mais importante: a paixão desmesurada que querem que tenhamos por quem está em cena é que conta.

A série é sobre a relação entre mãe, filha e avó, em todas as suas variações imagináveis. É sobre o ambiente familiar que cada um de nós teve ou, mais certeiramente, fantasiava em ter. Consegue ressoar com as raparigas que gostavam de ter tido uma mãe mais compreensiva — e com as adultas que têm a periclitante certeza de que serão super amigas da sua futura filha adolescente. Há um papel de chá de camomila para a alma a cumprir pelas séries sobre a complexidade do amor familiar. Desde que não seja o “Sons And Daughters”, por mim tudo bem.

Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa.