Almada estava fria, como a guerra que o PCP ainda tem contra o capitalismo. E não é ortodoxia casmurra ou mito, é mesmo princípio. O marxismo-leninismo está lá, no palanque vermelho ou na fila para o café (que é Delta, do socialista Nabeiro). Ainda antes de Jerónimo falar — com um discurso de duração quase fidelista de 90 minutos — já o Congresso dava a maior ovação à delegação cubana. Pouco depois dos militantes entoarem a Internacional, nas saudações a comitivas estrangeiras, só uma ficou próxima em aplausos da ode a Fidel: a do Vietname, país que conseguiu vencer os EUA, “os imperialistas”. Foi um “bom dia Vietname” com a força do PC.

A zona de convidados estrangeiros do lado esquerdo (sempre o esquerdo) do pavilhão é uma verdadeira internacional, com comunistas africanos, sul-americanos, de Leste, asiáticos, incluindo uma comitiva enviada por Kim Jong-un, da República Popular Democrática da Coreia do Norte. Alguns vão-se servindo de pastéis de nata, éclaires, sandes de queijo e até de Compal. Coca-cola, não há.

A bebida — que teve direito a uma taxa no Orçamento do Estado para 2017, por ser açucarada — é um símbolo do imperialismo americano, que a Cuba de Fidel combateu. O símbolo da revolução cubana mereceria nova ovação, quando Jerónimo lhe fez uma homenagem e ouviu todos os delegados e convidados gritarem: “Cuba vencerá!” Até a embaixada cubana ficou sensibilizada.

No exterior, encostado a um pilar, Gregório Simões Silva, lia a última edição da revista Sábado, com Fidel Castro na capa. Ao Observador, conta que já não é da “geração que sente a morte de Fidel como um familiar”, mas admite que “os mais velhos possam sentir”. Militante há mais de 40 anos, Gregório faz parte do núcleo de Rio Maior e explica porque está a ler sobre a vida de Fidel ao mesmo tempo que decorre o Congresso:

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A revista é de um camarada. Eu tive curiosidade e estou-me aqui a entreter. Até tem aqui coisas interessantes sobre o Salazar e o Fidel que eu desconhecia.”

Lê sobre a história, mas também lhe interessa a atualidade. O militante comunista acha que o acordo com o PS “foi bom” porque “PSD e CDS estavam a vender o país às prestações” e se continuassem no Governo “qualquer dia não tínhamos nada. Só falta mesmo vender a Caixa Geral de Depósitos”. Esse é outro dos assuntos do dia. Sobre a escolha de Paulo Macedo, o militante comunista diz que é “assim-assim” e que “lá por ter sido ministro do Passos não tem de ser mau”. Já de António Domingues, este reformado da construção civil tem a pior impressão: “Ele tinha de declarar como toda a gente. Não é mais que os outros. Não quis porque tem um iate de 300 mil euros e um casa de quatro milhões de euros.”

“PS é um bocadinho melhor que a direita”

Também do distrito de Santarém veio Manuel Eliseu, de 57 anos e militante desde os 21, e que assume fazer “parte do grupo de portugueses que o Jerónimo — bem, não deve ter sido ser ele sozinho, mas o comité central — desafiasse logo o PS na noite eleitoral a formar Governo”. Admite que, muitas vezes, a nível autárquico (a realidade que melhor conhece), “o PS tem muitas vezes o objetivo de tirar câmaras à CDU, mais do que à direita. É uma visão clubística da política”. Ainda assim não tem comparação com PSD e CDS:

Reconheço que o PS é um bocadinho melhor que a direita”.

Manuel Eliseu também comenta a escolha de Paulo Macedo — que levanta “reservas” à direção do PCP — dizendo que “se for para privatizar, como PSD, CDS e alguns do PS querem é uma má escolha. Se não for com o objetivo de privatizar, é uma boa escolha”.

O militante acredita que o PCP “pode fazer parte de um Governo” e que isso só “depende de ter uma votação com mais peso”. Manuel Eliseu diz que “não precisa de ser o mais votado de uma coligação, mas precisa de ter uma votação mais alargada”. Desde logo, mais votação que o Bloco de Esquerda que “tem necessidade de dar nas vistas e às vezes estraga tudo”.

Gregório e Manuel são dos militantes que vêm de fora da zona de Lisboa. É de “camaradas” como eles que Clarinda, comunista de 63 anos e militante há 41, recebe as bagagens de quem vem chegando ao Congresso. A militante diz ter o “privilégio” de ter “vivido com 20 anos a Revolução de Abril” em Lisboa, mas vamos ao que importa: a função que o partido lhe deu, de guardar os pertences dos camaradas. “Deixam aqui tudo, malas, chapéus de chuva, estou ali a ver um saco-cama. Não é que precisem de acampar, os camaradas arranjam alojamento para os de fora”, conta Clarinda.

Também António Ferreira, militante desde 1977, vai recebendo bagagens e quase se ofende com a pergunta sobre se o partido cobra para guardar as malas dos “camaradas de fora”: “Já basta o dinheiro que gastam nas suas vidas para virem aqui ter connosco, aqui não pagam nada”.

Ao mesmo tempo, chega um delegado que pousa um saco em cima do balcão de recolha de bagagem, ouvindo-se o som do vidro a bater na madeira. António Ferreira não perdoa: “Epá, tens aí vinho?” O camarada forasteiro, responde de imediato: “Não é vinho, é doce de abóbora”. Que trouxe, claro está, para partilhar com o coletivo.

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Zona de recolha de bagagem dos militantes que vêm de fora do distrito de Setúbal

Na banca ao lado, as Edições Avante! não param de vender livros. Manuela Silva, militante há 40 anos, conta que um dos livros que está com mais saída é o “Comunistas Escritores“, que tem textos de análise a escritores comunistas como Alves Redol, Urbano Tavares Rodrigues, José Saramago, Mário de Carvalho ou Manuel Tiago.

E quem vende mais? Cunhal ou Manuel Tiago? “Oh, já toda gente sabe quem é o Manuel Tiago…”, brinca Manuela Silva. Os camaradas adoram os clássicos: “Os 10 dias que abalaram o mundo vende sempre bem”. O Capital, de Karl Marx, não está nos seus melhores dias, mas há uma razão para isso. Manuela Silva conta que “amanhã [sábado] o livro do dia é O Capital, e, como está mais barato, os admiradores d’O Capital estão a guardar-se para amanhã”.

E depois há Fidel. “Temos a biografia do Fidel, em dois volumes, é autorizada, mas não é por ter morrido que vende bem. Nós conhecemos muito bem o Fidel. Há muito tempo. E não só o conhecemos como pessoa, mas também a obra que fez”. Os preços são acessíveis.

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Manuel Silva não vendeu hoje “O Capital”, de Karl Marx, porque amanhã é o “livro do dia” no Congresso.

Foi ali perto que, momentos antes, o antigo líder comunista Carlos Carvalhas recusava que o PCP viesse a ser um mero carregador de pianos do PS no futuro. Também queria tocá-lo, sugerindo que o partido poderia assumir mais responsabilidades governativas. Deu ainda uma sugestão de um novo nome para a “geringonça”, dizendo que o nome que dão ao acordo de esquerda não lhe interessa:

Até nos podem chamar pífaro”.

Quanto a música, pelo Congresso, ficou-se pela que saía das colunas, nos intervalos, antes de começar, ou quando os militantes saiam para almoço numa fila ordeira. Houve Jorge Palma, Humanos/Variações, Carlos Paredes e também Zeca (Grândola Vila Morena, no intervalo da tarde). O “Tanto Mar” de Chico Buarque ouviu-se pelo menos cinco vezes. E a versão escolhida foi a de 1978, que já inclui o verso do “murchar” da “bonita festa”, provocado pelo 25 de novembro de 1975. “Já murcharam tua festa, pá”, cantou Chico, a registar o fim do gonçalvismo e das experiências de governos comunistas em Portugal. Que não voltariam. Os militantes vão acreditando que o PCP um dia vai tocar o piano em vez de o carregar. Sabem que hoje (atualmente) não dá, mas acreditam que é possível no futuro e despedem-se como o título do livro que está em destaque na banca e que é um ícone: “Até amanhã, camaradas”.