Jerónimo de Sousa deu esta manhã o tiro de partida do XX Congresso do PCP, o primeiro desde que o partido viabiliza um Governo. Num discurso longo, de quase de 90 minutos, o secretário-geral comunista refletiu sobre os efeitos da “ofensiva imperialista” em todo o mundo, lembrou Álvaro Cunhal, elogiou Fidel Castro e as conquistas da Revolução Bolchevique, na Rússia. No plano interno, o comunista justificou a solução encontrada no Parlamento e recordou as conquistas do partido neste último ano, não poupando, no entanto, críticas às “limitações e contradições” do Governo socialista. Mas a nota dominante do discurso acabou por ser outra: a assunção clara de que o PCP fará tudo ao seu alcance para romper com a União Europeia.

Salvar a Europa significa cada vez mais derrotar a União Europeia

O secretário-geral do PCP aproveitou o início dos trabalhos para denunciar aquilo que diz serem as “imposições”, os “constrangimentos” e os “processos de extorsão, exploração e chantagem” aplicados pela União Europeia. Uma organização que, defendeu Jerónimo de Sousa, está condenada. Para os comunistas, salvar a Europa implica derrotar a UE. Um choque frontal com o Partido Socialista.

A experiência recente demonstra que a União Europeia constitui uma matriz política e ideológica, impossível de ser democratizada, humanizada ou refundada. É a sua natureza de classe — capitalista — que determina as suas políticas e opções”, defendeu o líder comunista.

O discurso de Jerónimo de Sousa entra, naturalmente, em conflito com o que os socialistas têm defendido: uma transformação da União Europeia, mas dentro do atual quadro político europeu. Ainda recentemente, Jorge Sampaio, por exemplo, defendeu, num artigo de opinião publicado no Público, que o caminho da salvação da União Europeia estava numa maior integração. Para o secretário-geral do PCP, no entanto, essa leitura é de “uma profunda hipocrisia”.

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“É uma profunda hipocrisia e um ato de manipulação política usar a crise na e da União Europeia justificar novos saltos em frente no processo de integração capitalista”, disse Jerónimo. Para o líder comunista não há solução: “A questão que está colocada não é a de maquilhar, refundar ou democratizar a União Europeia. Não. Salvar a Europa significa cada vez mais derrotar a União Europeia”.

As contradições do apoio ao Governo socialista

Perante uma sala com centenas de militantes comunistas, Jerónimo de Sousa lembrou o caminho percorrido desde a noite das eleições de 4 de outubro de 2015. Mais importante do que isso, explicou porque era importante interromper o “rasto de destruição” deixado pelo Governo de Pedro Passos Coelho: perante uma “política brutal de exploração e empobrecimento” o PCP não podia faltar à chamada — e “valeu a pena, camaradas”, diria mais à frente.

Mas entre travar o Executivo PSD/CDS e apoiar o Governo de António Costa existe um “quadro de contradições” que o líder comunista reconheceu. “Não era, e não é, a solução para responder ao indispensável objetivo de rutura com a política de direita e à concretização de uma política patriótica e de esquerda”, assumiu Jerónimo, antes de insistir, mais uma vez, que a atual solução política não representa um “Governo de esquerda”, nem sequer um “acordo de incidência parlamentar”.

A separação de águas vai-se repetindo a cada intervenção dos dirigentes comunistas: na Festa do Avante!, o mesmo Jerónimo de Sousa já tinha deixado claro que este era um “Governo minoritário do PS”, que segue o seu próprio programa político, respeitando o “compromisso” assumido com o PCP. No arranque deste congresso não foi diferente: o secretário-geral comunista voltou a garantir que o PCP mantém “total liberdade e independência políticas“, sem “ilusões” em relação as reais possibilidades de transformar o país.

Mais uma vez, o secretário-geral dos comunistas tenta fazer o equilíbrio entre três aspetos: manter o partido no seu quadro ideológico apesar de viabilizar um Governo, distanciar-se de um PS que não é de esquerda e reivindicar os ganhos de causa que conseguiu obter dos socialistas.”[A nossa intervenção] não alimenta ilusões em relação à política necessárias para resolver os problemas do país, nem esconde as insuficiências e limitações do quadro político da nova fase política nacional para lhes dar resposta”, insistiu o líder comunista.

Jerónimo fazia assim a ponte para a análise (crítica) do desempenho do Governo. Mesmo lembrando todas as conquistas conseguidas nesta legislatura, o líder comunista denunciou as “manifestas limitações” de um Executivo que continua sem se “libertar das imposições europeias, do Euro e do domínio do capital monopolista e de outros constrangimentos que determinam, em grande medida, a natureza da sua orientação”. Exemplos? A resolução do Banif, a nomeação da administração da Caixa Geral de Depósitos e as opções de política económica, fiscal e externa, enumerou.

O PCP não é apenas o travão da direita nem está “domesticado”

A meio do discurso, Jerónimo de Sousa dava uma resposta aos críticos do PCP: ao contrário do que sugerem os “setores da direita mais retrógrada e reacionária”, o PCP “não está domesticado” pelo PS, nem está a levar os socialistas “a reboque”. Nem sequer hipotecou “a sua pureza ideológica” por estar agora no arco da governação. Na verdade, ao contrário do que os críticos “andam há anos cinicamente a diabolizar e a estigmatizar”, os comunistas nunca estiveram fechados “num gueto”. O PCP, lembrou Jerónimo, sempre esteve disponível para encontrar compromissos.

Ora, compromisso não é sinónimo de salvo-conduto, insistiu o líder comunista, para socialistas ouvirem e para comunistas se convencerem. Agora e no futuro, o PCP não se vai limitar a servir de instrumento para impedir a direita de governar; vai fazer de tudo para influenciar a governação do país. No PCP todas as palavras são medidas e nesta frase Jerónimo de Sousa insinua que se não fosse o PCP, o PS não seria diferente do PSD e do CDS:

A questão fundamental que se coloca na atual situação nacional não é apenas a de evitar que PSD ou CDS regressem ao poder, mas sim impedir que a sua política seja desenvolvida por estes partidos ou pelo PS“.

As oito prioridades do PCP — a saída do euro e a renegociação da dívida

Jerónimo de Sousa aproveitou o discurso para enumerar “oito aspetos prioritários” para o PCP. À cabeça, a que mais opõe PCP e PS: “A libertação do país da submissão ao Euro e das imposições e constrangimentos da União Europeia“.

Mas há mais. O PCP exige a “renegociação da dívida pública, no seus prazos, juros e montantes, que garanta um serviço da dívida pública compatível com as necessidades de investimento público e criação de emprego”. Nada que os comunistas já não tenham defendido antes. O problema, no entanto, é que o Governo socialista não está disposto a travar essa batalha da renegociação da dívida em campo aberto. A pressão comunista aumenta. Da última vez que esta questão foi levantada no Parlamento pelo Bloco de Esquerda e Mário Centeno mostrou abertura, logo outros membros do Governo vieram a público fechar totalmente a porta a essa possibilidade.

Os comunistas defendem ainda a “valorização do trabalho“, a “defesa e promoção da produção nacional“, a “defesa de uma política de justiça fiscal“, a “defesa do regime democrático e do cumprimento da Constituição” e a “garantia de uma administração e serviços públicos ao serviço do povo e do país“.

A terminar, a oitava prioridade do PCP, que se traduz em mais um ponto de divergência entre comunistas e socialistas: A garantia do controlo público da banca e a recuperação para o setor público dos setores básicos estratégicos da economia”. Um caderno de encargos que o PS nunca cumprirá.

Cunhal, Cuba e URSS: a fé numa revolução que chegará

Apesar de grande parte do discurso de Jerónimo de Sousa se ter centrado na análise do quadro político português e da União Europeia, o secretário-geral começou o discurso por recordar Álvaro Cunhal: “Soubemos honrar a sua memória”, disse o secretário-geral comunista sobre a personalidade de referência do partido. “Figura central do século XX, referência incontornável para todos os que abraçam a luta libertadora contra todas as formas de exploração e opressão do homem e dos povos”.

Se era impossível não referir o líder histórico, Jerónimo tinha de mencionar outro líder do comunismo internacional: a exaltação da figura de Fidel Castro, um homem “excecional” que dedicou a vida toda “aos ideais da liberdade, da paz e do socialismo”. O PCP mostra a sua verdadeira natureza marxista-leninista, como também o líder comunista havia de referir no discurso:

A melhor forma de honrar a memória do camarada Fidel Castro é prosseguir a luta pelos ideais e projeto por que se bateu até ao fim da vida. É fortalecer a solidariedade com Cuba e a revolução socialista, exigindo o incondicional respeito pela soberania da Ilha da Liberdade, o fim imediato do criminoso bloqueio norte-americano e a restituição ao povo cubano de Guantanamo”.

Com estas palavras recebeu o primeiro grande aplauso do dia, com os militantes comunistas a gritarem, de pé e de punho erguido, “Cuba Vencerá”.

Jerónimo de Sousa denunciaria, ainda, aquilo que considera serem os crimes do “imperialismo” perpetrado pelos Estados Unidos, a NATO e a União Europeia que, com a sua “ofensiva belicista e intervencionista“, são responsáveis pela onda de refugiados que assola o Médio Oriente e o norte de África, pela a estabilização de África e em particular de Angola, e pela tentativa de reversão dos “valiosos processos de soberania e progresso social” na América Latina. Aliás, quando falava da União Europeia, responsabilizava-a pelo terrorismo.

Numa altura em que os comunistas se preparam para iniciar o centenário da Revolução Bolchevique, de 1917, o secretário-geral do PCP recordou as “conquistas e realizações da União Soviética e o seu decisivo papel nos revolucionários avanços do século XX”. Na frase seguinte, Jerónimo de Sousa reconheceria os erros da União Soviética.

A derrota de um ‘modelo’ que se afastou e contrariou o ideal e o projeto comunistas não põe em causa o sentido da evolução mundial e a exigência do socialista“, afirmou Jerónimo. Estava feita a crítica aos “desvios” da URSS, a formulação que os comunistas usam para descrever o terror do regime soviético.

Jerónimo de Sousa acabaria a sua incursão pela análise do panorama político mundial com uma garantia, uma crença e uma fé: “Por diferentes caminhos, fases e etapas todos os povos chegarão ao socialismo. Cumprindo leis gerais que o marxismo-leninismo desvendou e que a Revolução de Outubro confirmou”.