É um voto que não muda nada nem influenciará a decisão dos juízes, mas Theresa May conseguiu passar esta tarde no Parlamento uma moção que, não vinculando os deputados ao mesmo sentido de voto no dia em que “for a sério”, torna mais difícil a “deserção”. É como se se tivessem comprometido com o governo sem assinar nenhum papel. A moção do governo, que passou com 461 votos a favor e 89 contra, pede que “esta Casa respeite o desejo expresso pelo Reino Unido no referendo de 23 de junho de 2016 e que aceite acionar o Artigo 50º antes do dia 31 de março de 2017”.

Apesar de não ter peso legal, o peso político deste voto é inegável. Quem o admite é o próprio Presidente do Supremo Tribunal, David Neuberger que disse, no fim do penúltimo dia de audiências, que “depois deste voto, aquilo que estamos aqui a discutir parecerá a qualquer pessoa um pouco estranho”.

As contas de quem votou contra a moção de May são estas: cinquenta e um deputados do SNP (Scottish National Party), vinte e três Trabalhistas, cinco Liberais Dems, 3 SDLD (Social Democratic and Labour Party, Irlanda), três Plaid Cymru (Partido Social-Democrata do País de Gales), dois Independentes, um Verde e um Conservador. Estes votos não chegaram para fazer tremer o cenário cada vez mais real de que, independentemente da decisão dos juízes no Supremo, o parlamento votará ao lado do governo mas obrigou Theresa May a comprometer-se com a apresentação de um plano detalhado sobre as condições que irá exigir à Europa antes do voto.

Guerra constitucional prossegue

Às vezes não há outro lugar para se estar que não seja um lugar-comum: o caso que está a ser julgado no edifício do Royal Courts of Justice é o mais importante em uma geração. Para os britânicos e não só. São 11 — ou seja, todos os afetos àquele tribunal — os juízes que irão decidir se o referendo que retirou o Reino Unido da UE se torna imediatamente vinculativo ou se terá que passar pelo Parlamento, antes de o governo poder acionar o Artigo 50º do Tratado de Lisboa, que oficializa e põe em marcha a quebra com a União.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Desde que o Supremo Tribunal foi instituído, em 2009, nunca tantos juízes tinham sido convocados para julgar um recurso. Também não há memória que o antecessor deste tribunal, que iniciou funções em 1876 e tinha morada na Câmara Alta do Parlamento, tenha algum dia apresentando semelhante pujança decisória.

Para julgar um recurso? Sim, um recurso. O governo de Theresa May já perdeu este caso uma vez. A audiência que começou na segunda-feira e termina quinta, dia 8, é para analisar o recurso interposto pelo governo conservador de May à primeira decisão do High Court — o equivalente ao nosso Tribunal da Relação — que decidiu que o governo teria mesmo de levar ao Parlamento a ativação do infame artigo.

O mero facto de este julgamento estar a acontecer tem deixado os partidários da secessão bastante indignados. Os últimos dois dias foram de protestos. Em frente ao imponente edifício do Supremo Tribunal, no coração de Londres, há quem considere este julgamento uma tentativa desesperada dos europeístas de subverterem a vontade do povo britânico; e quem defenda a ação judicial por considerar que o Parlamento — e não o governo — deve decidir, em último caso, os destinos do país.

Nigel Farage, o “eurofóbico” ex-líder do Partido para a Independência do Reino Unido (UKIP), ameaçou reunir um protesto de 100.000 pessoas à frente do Supremo e a imprensa mais conservadora, como o Daily Mail ou o Daily Mirror, tem desembainhado ataques consecutivos, não só aos juízes, como a Gina Miller, a gestora financeira que decidiu levar o caso a tribunal, com o apoio da plataforma People’s Challenge.

O caso de Miller é simples: só o parlamento pode anular aquilo que aprovou. A lei das Comunidades Europeias de 1972, aprovada para que o Reino Unido entrasse na União Europeia, tem que ser revogada pelo Parlamento. Já Theresa May argumenta que pode acionar o Artigo 50º sob proteção da “royal prerogative“, um conjunto de poderes que vigoram desde a época medieval, tradicionalmente atribuídos ao monarca, mas que é de facto utilizado pelo primeiro-ministro, a pessoa que recebe, neste caso pela mão da rainha Elizabeth II, o poder de governar depois de conhecidos os resultados das eleições.

A prerrogativa é utilizada, por exemplo, para a nomeação e demissão de ministros, dissolução do parlamento, convocação de eleições, envio de tropas para cenários de guerra, reconhecimento de novos países e aceitação ou quebra de tratados internacionais. May diz que o Parlamento já foi consultado, em 2015, quando passou a lei que autorizou a realização do referendo e por isso não é necessário que volte a ser.

Um dos advogados do governo, Jeremy Wright, disse que estes poderes seculares não são “uma espécie de relíquia antiga, mas sim uma necessidade contemporânea” e “um pilar fundamental da nossa constituição como estado soberano”.

Como o Reino Unido não tem uma constituição escrita, o governo assumiu que este conjunto de poderes, que os advogados definem como “o resíduo da autoridade legal deixado ainda nas mãos da Corte”, seria suficiente para iniciar o processo de saída da União sem consultar os deputados. Os juízes decidiram de outra forma. E tanto analistas como advogados e juízes reformados têm dito à imprensa britânica que acreditam que o Supremo possa seguir na mesma linha e validar o veredito anterior. James Eadie, que também é advogado do governo neste caso, disse que era “muito provável que os deputados tivessem que vir a aprovar o acordo final entre o Reino Unido e a União Europeia”.

O que acontece se o Brexit tiver que ir ao Parlamento

Em primeiro lugar, o prazo para o acionamento do Artigo 50º será quase de certeza alargado, apesar de Theresa May ter fixado março de 2017 como data limite. No entanto, Michel Barnier, negociador dos termos de Brexit por parte da União Europeia, disse esta semana que o tempo de negociação será menor que os dois anos previstos, cerca de 18 meses, já que o acordo terá que ser ratificado pelos restantes estados-membros.

Barnier aproveitou também para voltar a frisar os quatro princípios segundo os quais conduzirá as negociações: “Os 27 estados-membros permanecem unidos, não haverá negociações antes de o Reino Unido ativar o Artigo 50º, Brexit não poder ser um ‘negócio’ mais proveitoso do que permanecer na União Europeia e o Reino Unido não pode garantir acesso ao mercado único, enquanto ao mesmo tempo se recusa a receber imigrantes”, elencou o responsável.

O projeto de lei que May apresentará ao Parlamento já estará escrito e será o mais simples possível — há rumores de que contenha apenas 16 palavras — para reduzir ao máximo as possibilidades de debate na Câmara dos Representantes.

Só que a oposição não vai dar o Brexit, nem os termos em que se será acordado, de barato. O líder dos Liberais Democratas, Tim Farron, tal como o seu antecessor, Nick Clegg, disseram que o partido, apesar de ter apenas nove deputados, vai bloquear a ativação do Artigo 50º a menos que o projeto de lei assegure um segundo referendo aos termos da saída — o que será decidido, não só pelo Reino Unido, mas pelos 27 restantes países da União Europeia. Também o líder dos trabalhistas, Jeremy Corbyn, disse que se o Supremo reforçar a posição da instância anterior, os seus deputados tentariam incluir alíneas na nova lei para proteger os direitos dos trabalhadores e o ambiente.

Teoricamente, não há um limite de tempo para aprovar qualquer lei que Theresa May leve ao parlamento, até porque a Câmara Alta também terá que ser consultada e há Lords que sempre se revelaram bastante céticos em relação ao futuro do país fora da UE. É, contudo, muito pouco provável que os deputados atrasem ou anulem o Brexit, porque sair da União Europeia foi a vontade demonstrada pela maioria do país no passado dia 23 de junho. O que também pode contribuir para o atraso do acionamento do Artigo 50º é a vontade expressa pelos governos da Escócia e do País de Gales em participarem na discussão sobre os termos da saída.

Quem são os todo-poderosos?

Dez homens, uma mulher, nenhuma minoria étnica. Ainda Sarah Helm, no Guardian: “Os juízes, apesar de não serem todos conservadores, são parte de uma elite. Com apenas uma mulher entre eles e nenhuma minoria étnica representada, têm muito que andar até serem um conjunto verdadeiramente representativo”.

Lord David Neuberger

Tem 68 anos e estudou a escassos metros de onde está a decorrer a audiência, na prestigiada escola de Westminster. É Presidente do Supremo desde 2012 depois de quase 40 anos na área do Direito. Antes disso, estudou Química e passou pela banca privada, mas já disse de si mesmo ser “um fracassado na área da ciência e da finança”. Apesar do seu percurso privilegiado, admite que a globalização veio “colocar a riqueza nas mãos de poucos”.

Os defensores do Brexit não acreditam no seu total distanciamento em relação à questão do referendo, já que Neuberger continua a defender a vigência da Convenção Europeia dos Direitos Humanos no Reino Unido, protocolo ao qual se opõem alguns “euro-céticos” por considerarem que esta interfere com a capacidade do governo britânico em combater o crime e controlar a imigração dentro das suas próprias portas. A mulher de Neuberger, no Twitter, classificou o Brexit como uma “tragédia”, uma ideia “má e absurda”, e “não mais que um voto de protesto”.

Lady Brenda Hale

Uma progressista empedernida, é a acusação que os seus opositores lhe fazem. Fez toda a sua carreira nas áreas do Direito do Trabalho e Familiar e as suas posições feministas estão bem documentadas. Numa recente conferência na Universidade de Birmingham, disse que o Supremo devia “ter vergonha” de não aumentar radicalmente a diversidade dos seus juízes. Com 71 anos e uma sólida carreira académica entre Cambridge e Manchester, Hale é a única mulher do coletivo. Recentemente alertou para a possível perda dos direitos laborais e das mulheres, caso o Reino Unido escolhesse desvincular-se dos vinte e oito.

Lord Jonathan Mance

Tem 73 anos e chegou a este tribunal em 2005. Formou-se em Direito na Universidade de Oxford e dedicou a maioria da carreira ao Direito Comercial. Exerceu em Hamburgo e já representou o Reino Unido como juiz no Conselho Europeu de Juízes Consultivos. Os “euro-céticos” criticam as suas declarações a favor da Europa e as suas ligações ao bloco estendem-se a toda a família: a mulher é juíza convidada em Haia, o seu filho trabalha para o Financial Times e o genro é um empenhado defensor da Europa nas redes sociais.

Lord Brian Kerr

Antes de chegar ao Supremo, em 2009, Kerr, com 68 anos, foi o mais alto magistrado da Irlanda do Norte. É visto como pró-UE, não só por ser irlandês, mas porque sempre defendeu abertamente a incorporação das leis europeias na lei britânica. Formou-se no St. Colman’s College, em Newry, e foi professor na Queen’s University, em Belfast.

Lord Anthony Clark

Especializado em Direito Marítimo e Comercial, começou a exercer em 1985. Com 73 anos é o magistrado mais velho e com mais experiência do Supremo Tribunal, já que foi o primeiro a ser nomeado diretamente para integrar o Supremo — instituição que substituiu o Tribunal de Recurso da Câmara Alta (muitas vezes apelidado apenas de Law Lords), o braço judicial da Câmara Alta britânica. Não se conhecem posições políticas.

Lord Nicholas Wilson

Foi professor na Universidade de Oxford e especializou-se em Direito da Família. Foi juiz do High Court, a instância anterior ao Supremo, onde chegou em 2011. Tem 71 anos e sempre se mostrou contra a ingerência do poder judiciário no executivo — o que pode beneficiar Theresa May, já que o que a primeira-ministra pede é precisamente que o governo seja autorizado a decidir por si mesmo quando ativar o Artigo 50º.

Lord Jonathan Sumption

Depois de estudar História na Universidade de Oxford, tornou-se advogado em 1975 e foi nomeado para o Supremo Tribunal em 2012. É considerado o juiz mais eurocético do grupo. Já se manifestou contra a Convenção Europeia dos Direitos Humanos por “menosprezar o processo democrático” do Reino Unido. Este é, contudo, um homem muito difícil de analisar. Ele mesmo diz “mudar de ideias a cada cinco minutos” e diz-se “um conservador que vota nos trabalhistas” para depois dizer que “esse não é sempre o caso”. Quase tão famoso pelos seus livros de história como pelos casos que julgou (já representou o governo, Roman Abramovich e Alastair Campbell), os seus colegas descrevem-no como “brilhante”, o “cérebro do reino”, “incrível”, “um oponente terrível”.

Lord Robert Reed

Tem 60 anos, é um dos dois juízes escoceses do Supremo e colaborou ad hoc com o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos: duas características que o colocam no centro do alvo dos críticos, isto porque foi na Escócia que se verificaram algumas das mais esmagadoras votações pró-EU. Estudou Direito em Edimburgo e em Oxford e especializou-se em Direito Civil.

Lord Anthony Hughes

Tem 68 anos, tendo iniciado a sua carreira como advogado em 1970. Foi membro do High Court na divisão de Direito Familiar e chegou ao Supremo em 2013. Em casos anteriores, também ele se manifestou ferozmente contra a ingerência dos tribunais nos assuntos que dizem respeito ao Parlamento. Hughes foi vice-presidente da divisão de Direito Criminal do Tribunal de Recurso, o que terá contribuído para a sua integração no Supremo, que tradicionalmente apresenta lacunas nesta área.

Lord Patrick Hodge

Não tem ligações conhecidas à União Europeia e nunca se pronunciou sobre o resultado do referendo ou teceu qualquer comentário durante a campanha. O seu filho George, contudo, trabalha nas Nações Unidas e é ardentemente pró-Europa. Na rede social Twitter, George Hodge disse que “a campanha pela saída é um dos mais deprimentes espetáculos da política britânica moderna”. Faz parte do think-tank The David Hume Institute que normalmente organiza conferências com académicos ligados à ala mais conservadora dos trabalhistas, mas ainda assim trabalhistas. Presidiu a casos em várias áreas que vão do crime financeiro à propriedade intelectual. Chegou ao Supremo em 2013 e tem 63 anos.

Lord Robert Carnwath

Tem 71 anos e é provavelmente o europeísta mais convicto dos 11. Educado primeiro em Eton depois em Cambridge, tem dedicado muito do seu tempo extra-tribunal a causas ambientalistas. Esteve perto de ser nomeado representante do Reino Unido no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, cuja supremacia em relação à lei britânica já foi ouvido a defender. Foi membro fundador do Fórum Europeu de Juízes pelo Ambiente e tem-se batido contra os negacionistas do aquecimento global.

Juízes em cheque

Depois de um fim-de-semana marcado por ataques na imprensa e nas redes sociais aos juízes que vão decidir o recurso — os “Inimigos do Povo”, lia-se na capa do Daily Mail — alguns especialistas uniram-se para explicar porque é que, de facto, os juízes estão a tentar garantir que o parlamento eleito pelos britânicos seja ouvido.

Como escreveu no The Guardian Sarah Helm, ex-correspondente do diário Independent em Bruxelas, “os juízes estão a ser acusados de estarem a tentar obstruir o Brexit mas o que estão a fazer é a dar mais poder ao parlamento, a tal soberania que o campo do ‘out’ exigiu durante a sua campanha”, disse Helm, acrescentando ainda que “esta audiência é a mais importante em mais de 140 anos. Desde que este tribunal se reuniu pela primeira vez, em 1876, nunca se tinha pedido a um grupo de juízes que deliberassem sobre quem é que, de facto, no Reino Unido, retém o poder”.

Jeremy Wright, um dos advogados do governo queixou-se, no julgamento anterior no High Court, em novembro, de que “o tribunal tinha tornado o Brexit pouco mais do que uma nota de rodapé”, mas para Helm é assim mesmo que o Supremo deve encarar a semana que tem à frente “porque o que agora está em causa é bem mais importante que o Brexit”.

Se o governo perder de facto o recurso no mais alto tribunal do Reino Unido, o próximo passo, se May o quiser dar, é levar o caso ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TjUE) que, mesmo assim, só se prenunciaria se o Tribunal inglês decidisse enviar a questão à consideração do TjUE.