“Programar este ciclo foi uma descoberta para mim e acredito que para o público também será”, comenta João Ferreira. “Foi uma descoberta sobretudo em termos de factos históricos”, precisa. “Durante décadas, os afro-brasileiros foram representados na ficção audiovisual do Brasil, quer no cinema quer na televisão, em torno de estereótipos, o que reduz a sua história. Os filmes que programámos vêm de certa forma mostrar o papel que estas comunidades tiveram na construção do Brasil que hoje conhecemos. E há pormenores fascinantes, como a relação entre o Candomblé e a sexualidade.”

João Ferreira é um dos programadores do ciclo de cinema “A Experiência Afro-Brasileira na Tela”, que começa este sábado em Lisboa e termina na quinta-feira, dia 15. É também diretor artístico dos festivais de cinema Queer Lisboa e Queer Porto, razão por que alguns dos filmes escolhidos evocam as questões de género e orientação sexual. Os outros programadores são Ricke Merighi e Karla Bessa.

O ciclo decorre na Cinemateca Portuguesa e na Casa Independente, organizado pela empresa municipal de cultura EGEAC, através do programa de financiamento Africa.Cont, e comissariado pela associação cultural Janela Indiscreta, a mesma dos festivais Queer.

Estão programados 25 filmes, entre curtas e longas-metragens, além de dois debates e uma instalação vídeo. O ciclo dirige-se ao grande público, incluindo a comunidade brasileira que vive na capital.

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“O Brasil é muito grande e complexo, por isso tenho ideia de que muitas vezes os próprios brasileiros não conhecem algumas realidades do país”, defende João Ferreira. “Eles próprios podem surpreender-se com alguns dos filmes que vamos passar.”

O filme de abertura é Abolição (1988), de Zózimo Bulbul, exibido neste sábado, 10, às 18h00, na Cinemateca.

“O realizador começou a carreira como ator, foi um dos rostos do Cinema Novo brasileiro e o primeiro protagonista negro de uma novela”, segundo João Ferreira. “Depois começou a questionar a representação dos negros na ficção audiovisual brasileira e resolveu fazer este documentário, na altura em que se celebrava o centenário da abolição da escravatura. É um tratado de história e um ensaio poético”, resume.

[excerto de “Abolição”]

A proposta de encerramento é A Rainha Diaba (1974), de António Carlos Fontoura, inspirado em Madame Satã (1900-1976), figura mítica do Rio de Janeiro, um negro boémio e homossexual ligado ao submundo da noite, aqui interpretado pelo ator Milton Gonçalves. Considerado um filme em alguns aspetos pioneiro. Passa na quinta-feira, 15, às 21h00, na Cinemateca.

[excerto de “A Rainha Diaba”]

Mas nem só de clássicos vive “A Experiência Afro-Brasileira na Tela”. Branco Sai, Preto Fica, de Adirley Queirós, é uma obras de 2014 que o programador do ciclo também põe em destaque.

Trata-se de um documentário de ficção que parte de uma história verídica de racismo e repressão policial. “Passa-se em Brasília, uma cidade que não vemos muito representada no cinema”, analisa João Ferreira.

“Começa com um acidente numa discoteca. A polícia pede aos brancos para saírem e aos negros para ficarem lá dentro, daí o título. Mas depois o filme ganha contornos de ficção científica, com alguém que vem do futuro para descobrir o que se passou naquela noite. É uma forma muito interessante de contar um episódio real, de construir ficção sobre a realidade.”

[trailer de “Branco Sai, Preto Fica”]

Dois debates serão organizados em torno das temáticas deste ciclo. Domingo, 11, às 17h00, na Casa Independente discutem-se “Sexualidades Queer, Identidade e Género no Candomblé e na Umbanda”, com a presença das investigadoras Clara Saraiva, da Faculdade de Ciências Socais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; Karla Bessa, da Universidade Estadual de Campinas, em São Paulo; e dois representantes daquelas religiões, ainda não confirmados.

Na quarta, 15, às 19h00, na Cinemateca o tema é “Leituras Queer do Cinema Afro-Brasileiro”, com a realizadora Viviane Ferreira e a investigadora Karla Bessa, também ela realizadora.

Este segundo debate segue-se à exibição de um conjunto de sete curtas-metragens intitulado “Novas Vozes Femininas no Cinema Afro-Brasileiro”. Destas, João Ferreira evidencia Cores e Botas (2010), de Juliana Vicente.

“Fala de uma bailarina negra que quer fazer parte do show da Xuxa, um programa de televisão que também ficou muito conhecido em Portugal. As bailarinas do programa eram todas brancas e loiras, à imagem da apresentadora. Este filme aborda o preconceito em torno da imagem, de uma forma alegre e divertida”, justifica.

Ao longo dos seis dias do ciclo, será exibida na Sala dos Cupidos da Cinemateca a instalação vídeo A Mina dos Vagalumes (2015), de Raphaël Grisey, com imagens de quilombos de Minas Gerais.

Os quilombos são comunidades historicamente ligadas à resistência das comunidades submetidas à escravatura pelos portugueses. “Estes espaços apareceram em África no século XV, e ainda subsistem no Brasil, foram instrumentais durante a escravatura, como locais de resistência política e social”, contextualiza o programador. “Este documentário-instalação fala dos problemas que hoje afetam os quilombos, ambientais e de especulação imobiliária, sobretudo.”

A temática queer – relacionada com minorias sexuais e de género, mas também com identidades ou comportamentos fora das normas – perpassa muitas das propostas desta programação, ainda que de forma nem sempre óbvia.

“Quisemos pensar as questões do corpo, do género e da sexualidade”, explica João Ferreira. “À partida, o cinema queer, explicitamente como estética ou narrativa, não está muito presente na cinematografia afro-brasileira. Por isso, encontrámos uma série de pistas por via dos filmes que falam da representação do corpo.”

As curtas-metragens agendadas para domingo, às 16h00, na Casa Independente – de entre merece referência Mulheres de Axé – Vozes Contra a Intolerância (2013), de Marcos Rezende – são exemplares dessa ponte entre o queer e a vivência afro-brasileira.

“São curtas sobre como o candomblé e a umbanda foram fundamentais, por exemplo, na luta contra a sida no Brasil, numa altura em que o estado fazia campanhas de prevenção dirigidas a brancos e à classe média. Pessoas ligadas ao candomblé lançaram campanhas junto das comunidades afro-brasileiras. Além disso, são religiões que acolhem pessoas gay ou transgénero, e isso é mostrado nestas curtas e em vários outros do ciclo.”