Houve um tempo em que Walt Disney era visto como um revolucionário do cinema, elogiado por nomes como Salvador Dalí, Leni Riefenstahl, Igor Stravinsky ou Sergei Eisenstein, e os seus desenhos animados eram aclamados e premiados até na Rússia comunista. Eisenstein era um admirador fervoroso. Visitou Disney e os seus estúdios em Hollywood em 1930, e os dois realizadores ficaram amigos. O autor de “Ivan, o Terrível”, um filme onde a influência da animação de Disney é clara e reconhecida por Eisenstein, escreveu sobre ele e considerava-o “a maior contribuição dos Estados Unidos da América para as belas-artes”, e os seus filmes “os de apelo mais universal que já vi”. Convém recordar isto a uma geração que associa o nome de Walt Disney apenas a uma marca global, aos parques de diversões e a um conglomerado de entretenimento de massas que é dono da Pixar, da Marvel, dos Marretas e da Lucasfilm, e da qual os estúdios de animação são apenas uma parte.

Walt Disney, que morreu há 50 anos, foi um inovador e um gigante do cinema, que fez uma revolução técnica, narrativa, estética, cultural e industrial na animação, aliando a visão artística ao espírito de iniciativa capitalista e resgatando-a ao seu cantinho de diversão marginal e artisticamente menor. Nele coexistiam o artista, o homem de ideias e o empresário. Disney geria e inspirava grandes equipas de desenhadores animadores e (recordemos apenas Ub Iwerks, com o qual criou o coelho Oswald e o rato Mickey, ou os lendários “nine old men”, o núcleo duro de nove colaboradores mais próximos, como Ward Kimball, Ollie Johnston ou Frank Thomas), que conceberam longas e curtas-metragens que são hoje clássicos do cinema animado e criaram uma enorme quantidade de personagens imortais, que se expandiram para os “comics” e para a televisão, do pato Donald a Pluto, de Pateta ao Professor Pardal.

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Reduzir Walt Disney a um mero “fornecedor de entretenimento familiar sensaborão”, como escreveu Leonard Maltin, seu biógrafo e um dos seus grandes defensores, é tão reducionista como considerar que o cinema de animação começa e acaba com ele. É verdade que o Disney artística e tecnicamente arrojado (“Branca de Neve e os Sete Anões” foi, em 1937, a primeira longa-metragem animada americana, concebida como se de uma grande produção de imagem real se tratasse; “Fantasia”, de 1940, é um filme avançadíssimo para o seu tempo, do uso da música à influência da arte moderna; e as curtas da série Silly Symphonies são um espaço de experimentalismo, tendo estreado o Technicolor na animação) e contador de histórias visuais com alcance universal, é também o Disney do sentimentalismo, do antropomorfismo “cute” e de um conformismo conservador e cândido muito americano. Mas é precisamente isso que faz dele uma personagem tão especial e tão única na história do cinema, da animação, da cultura e da indústria do entretenimento.

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A sua obra no cinema animado tem um pé firmemente assente no modo americano de ser, de fazer e de olhar o mundo, expresso nas personagens que criou. Sendo o rato Mickey a maior, mais significativa e característica, na qual o público americano se identificou e reviu instantaneamente, e também instantaneamente saltou fronteiras, tornando-se uma personagem de agrado universal. O outro pé repousa no universo dos contos populares, das lendas e do grande património literário da velha Europa, que Walt Disney, leitor dos clássicos e fascinado pela arte, pelos monumentos, pelas tradições literárias e pelas paisagens do continente europeu, foi minerar, revitalizar e retransmitir (embora também, e inevitavelmente, simplificando-as e edulcorando-as) com toda a arte, energia, criatividade e alegria da sua poderosa máquina cinematográfica de fabricar fantasia.

A partir de meados dos anos 50, e como escreve o citado Leonard Maltin, as exigências comerciais do império que entretanto tinha erguido, e a necessidade de fornecer entretenimento familiar mais rapidamente e em cada vez maior quantidade, fizeram com que Walt Disney se dedicasse “a uma série de filmes de imagem real e à criação da Disneylândia [inaugurada no Verão 1955] e do programa de televisão que a ia promover. A criatividade continuou a ser uma característica das curtas, médias e longas-metragens que saíam do seu estúdio, mas a audaciosa era da experimentação tinha acabado”. E o primeiro desenho animado sonoro sincronizado, “Steamboat Willie” (1928), com Mickey e Minnie era já história.

Mas não é por acaso que a última grande animação da Disney antes dos anos de crise criativa dos estúdios, e da nova era sob a batuta de Jeffrey Katzenberg, no final da década de 80, tenha sido “O Livro da Selva”. A derradeira supervisionada por Walt Disney, e concluída e estreada em 1967, após a sua morte. Até ao fim, Walter Elias Disney, o mago industrial que juntou o sucesso criativo ao sucesso financeiro, sempre soube o que estava a fazer,