Seria fácil encher este texto com referências rigorosas a datas, locais, nomes e títulos, para tanto se dariam cliques num motor de busca, mas isso pouco importa para quem viu George Michael como voz insuperável de uma identidade construída e reconstruída ao longo dos anos, de dentro para fora, dele para nós, num processo interminável.

Na urgência da notícia, mal se soube, domingo à noite, jornais escreveram em título que morreu George Michael, “o cantor de ‘Last Christmas’”, belo resumo de ouvidos gelados e sensibilidade em veraneio, enquanto jornais de língua inglesa correram a noticiá-lo como “superstar”, “music icon”, “gay icon”.

George Michael não é apenas a fase Wham! e não se resume a um êxito natalício com três décadas em cima. Faz falta lê-lo antes e depois do palco ou do single, mesmo se foi aí que se irmanou connosco.

Preso às malhas do sex symbol das adolescentes na década 80, parece ter feito um longo caminho de libertação, por vezes esquisito, marcado por episódios de sexo, drogas e acidentes de trânsito.

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Chamámos-lhes escândalos e até nisso ele foi raro, por aí segurando a atenção e empatia de um público que se reviu nos baixos daquela vida comum. É preciso ouvir as canções dele. E reparar. George Michael não se pôs a dançar com os freaks só agora na fase final, que terá sido a da decadência.

Abriu os anos 90 com “Freedom!”. Estaria a falar do nascimento de um artista pós-Wham! ou anunciava já uma orientação que ninguém quis ver? Não tinha ainda 30 anos.

A meio da década escreveu “Fastlove”. Em 1998 (esta data sabe-se de cor) gravou “Outside”, depois do famoso episódio em que um polícia de Beverly Hills o deteve por atentado ao pudor numa casa de banho pública. Mais recentemente, assinou “An Easier Affair”.

Foi um cantor de libertação, no sentido em que se definiu como pessoa em tempo real, à vista de todos, e partilhou connosco essa construção. Muitíssimo desalinhado de movimentos organizados de defesa de minorias, e mesmo sem essa agenda ideológica, levou à letra a máxima feminista de 70: “O pessoal é político”.

Não foi uma estrela igual às outras, nem é o cantor de “Last Christmas”. Não conservou a distância olímpica que nos habituámos a ver em cantores e cantoras da mesma geração, não quis entrar na linha, não tomou conta da personagem George Michael e deixou que soubéssemos os podres de Georgios Kyriacos, exatamente iguais aos nossos.

O cantor de “I know you want to, but you can’t say yes” fica como ícone de um tempo que não terminou, porque não pode terminar, inventemos sobre ele as narrativas que quisermos. A identidade de cada pessoa é um caminho, não é um slogan, disse-nos George Michael.