Um texto do escritor José Saramago sobre a Europa, originalmente publicado no jornal francês Libération, é publicado pela primeira vez em língua portuguesa no último número da revista digital Blimunda, disponível no site da Fundação José Saramago.

Numa rubrica designada Saramaguiana, o texto intitula-se “Meditação sobre uma jangada” e consiste numa reflexão que o autor faz sobre os rumos da Europa, partindo da alegoria criada no seu romance “A Jangada de Pedra”, em que imagina que a Península Ibérica se separa do continente e parte à deriva pelo oceano, entre a América e África.

Nesse texto, José Saramago confessa que muitas vezes se confundiu das malhas da sua própria ficção e que se chegou a imaginar “transportado na fantástica jangada de pedra em que transformara a Península Ibérica, flutuando sobre o mar atlântico”, sem sentir o mínimo pesar, tristeza ou saudade. Isto porque afastava-se da Europa, mas os “tecidos vitais da barca” continuavam a alimentar as raízes da sua identidade.

Desta forma, introduz uma crítica aos rumos que a Europa tem seguido, narcisicamente centrada em si mesma, como sendo o que “de mais belo, de mais inteligente e de mais culto a Terra produziu até hoje”, e esquecendo os desastres e horrores europeus e a forma preconceituosa como inferioriza determinados países europeus, como Portugal e Espanha.

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Suponho que estamos vivendo o tempo em que a Europa deveria apresentar a juízo o balanço da sua gestão, se não pretende prolongar (…) o seu pecado ou vício maior, que é a existência de duas Europas, a central e a periférica, mais o consequente lastro histórico de injustiças, discriminações e ressentimentos”, escreve José Saramago no seu texto.

Excluindo já do seu discurso, as guerras, invasões, genocídios e eliminações seletivas que ficaram para a história, o escritor cinge-se apenas à “ofensa grosseira” e ao “comportamento aberrante” que consiste em a Europa ser “eurocêntrica em relação a si mesma”.

Para os estados europeus ricos e, segundo a opinião narcísica em que se comprazem, culturalmente superiores, o resto da Europa é algo vago e difuso, um pouco exótico, um pouco pitoresco, merecedor, quando muito, da atenção da antropologia e da arqueologia, mas onde, apesar de tudo, contando com as adequadas colaborações locais, ainda se podem fazer alguns bons negócios.

José Saramago, Nobel da Literatura em 1998, alerta que não haverá no futuro uma nova Europa se não for abolido “o preconceito da prevalência ou da subordinação das culturas”, sublinhando que as “hegemonias de hoje” resultam da evidenciação do próprio, que se impôs também graças a uma certa “resignação” e até à “cumplicidade das próprias vítimas”, numa crítica também à atitude servil dos países periféricos.

“Nenhum país, por mais rico e poderoso que seja, deveria arrogar-se uma voz mais alta”, nem “propor-se como mentor ou guia dos restantes”, porque as culturas não são melhores nem piores, nem mais ricas ou mais pobres, umas que as outras, e é pela diferença que se justificam, defende.

José Saramago termina o texto reconhecendo que o romance “A Jangada de Pedra” (“Le Radeau de Pierre”, em francês) é o efeito de um “ressentimento histórico”, pelo que, provavelmente, só um português o poderia ter escrito.

E ainda confessa que estaria disposto a fazer regressar a jangada, se a Europa, reconhecendo-se incompleta sem a Península Ibérica, “viesse a fazer pública confissão dos erros cometidos, das injustiças e dos desprezos com que durante tantos anos tratou dois povos a quem deve muito mais do que aquilo que tem querido reconhecer”.