Os cerca de 50 médicos internos que não conseguiram vaga para prosseguir com a especialização em janeiro de 2016 e que têm estado a trabalhar desde então, “a título excecional”, no Serviço Nacional de Saúde (SNS) vão mesmo ficar sem contrato de trabalho, caso não se tenham candidatado ao concurso de 2017 para iniciarem especialização a 1 de julho deste ano. É isto que determina o Governo, num despacho publicado na semana passada. Além do problema que se levanta para estes profissionais, podem ainda surgir problemas ao nível da prestação de cuidados, uma vez que estes internos estão a assegurar escalas em vários serviços hospitalares, garante associação.

O diploma que vem, por um lado, ditar o prolongamento do contrato resolutivo a termo incerto destes profissionais, fixa, por outro, que “nas situações em que os médicos abrangidos pelo presente despacho optem por não se candidatar ao procedimento concursal de 2017, para ingresso no internato médico, o contrato (…) cessa automaticamente, sem quaisquer formalidades”.

Este despacho, que foi publicado com meses de atraso, é esquizofrénico. Neste momento, estes colegas já não se podem candidatar ao concurso, porque o exame foi em novembro. Nós nem sequer conseguimos perceber como é que um despacho tem efeitos retroativos”, sublinha Estevão Soares dos Santos, presidente da Associação de Médicos pela Formação Especializada, acrescentando que este diploma chega com um ano de atraso e que é “fundamental o Governo anulá-lo”.

Da meia centena de médicos que ainda está a trabalhar no SNS (de um total de 114 que não conseguiram vaga para iniciar especialidade em janeiro de 2016), “a grande maioria não se voltou a candidatar, nem se submeteu à prova de seriação em novembro do ano passado” porque, segundo Estevão Santos, “tinham receio de passar a ficar abrangidos pelas regras do novo regime jurídico do internato médico”, que entrou em vigor a 1 de junho de 2015 e que é menos protetor para os internos. Além disso, das reuniões que tiveram na Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), no ano passado, “nunca de lá saíram com a resposta de que deveriam candidatar-se”, garante o responsável.

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E a decisão tomada pela maioria destes jovens médicos acabou por ser “validada” pelo tribunal, justifica Estevão Santos. Numa decisão datada de 22 de novembro de 2016, resultante de uma ação interposta por um grupo destes médicos internos, o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa escreve que os requerentes têm o “direito” a “obterem essa formação específica sem terem de se submeter a um novo procedimento concursal”. “Conclui-se, assim, que a Administração continua obrigada a prestar aos requerentes e ao interveniente principal a formação específica do internato médico”, ainda que o momento da prestação de tal formação só possa ser determinado pela própria Administração.

Médicos acusam Governo de ilegalidade

E as críticas ao despacho assinado pelos ministros da Saúde e das Finanças não se ficam por aqui. “Eles estão a cometer uma ilegalidade. Estão a transformar um contrato resolutivo a termo incerto num contrato a termo certo“, atira Estêvão Santos, afirmando tratar-se de “um despedimento de forma encapotada”. O representante destes médicos já contactou os sindicatos, o PCP e o Bloco, e afirma que a associação está a tentar perceber o melhor mecanismo para agir. “À partida será recorrer novamente ao Tribunal Administrativo.”

Mais uma vez, Estevão Santos socorre-se da decisão do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa que, na sentença a que o Observador teve acesso, escreve que “a circunstância de não terem ocupado qualquer das vagas não importa no seu caso a exclusão do procedimento formativo, nem a extinção dos contratos ou da comissão de serviço que os vincula à Administração”. Isto é, o facto de estes jovens médicos internos não terem conseguido uma vaga para iniciar a especialidade a 1 de janeiro de 2016, não pode expulsá-los do internato médico (composto pelo primeiro ano comum e pelos restantes anos de formação na especialidade), nem pode implicar a cessação do contrato que os mesmos têm.

Baseado naquilo que consta do regime do internato médico pelo qual aqueles médicos ainda estão abrangidos — por já se encontrarem a fazer o ano comum quando o novo regime entrou em vigor –, o juiz diz que “os próprios contratos têm um termo resolutivo incerto que coincide com o fim do internato, pelo que nem há que formalizar a continuação do vínculo jurídico que liga os médicos internos em causa à Administração”. E por fim do internato entende-se a obtenção do grau de especialista, sublinha Estêvão Santos.

O Observador contactou a ACSS para perceber se será criado um novo procedimento para que estes médicos possam candidatar-se ainda ao concurso deste ano, mas não obteve resposta até ao momento.

“Já falei com alguns colegas. A maior parte das instituições ainda não está ciente deste despacho, até porque a ordem que tiveram da ACSS há uma semana foi que os colegas se manteriam a exercer funções. E também não vem referido no despacho qual a data de cessação. Os colegas estão escalados, a assegurar escalas. Os doentes também estão em risco”, alertou Estêvão Santos.

O médico chama ainda a atenção para a proposta de alteração à Lei do Orçamento do Estado para 2017 apresentada pelo PCP, a propósito deste assunto, e que foi integrada no diploma. No texto que acompanha a proposta, os deputados comunistas escrevem que a proposta prevê “que, para além de se manter estes médicos vinculados e ao serviço do SNS, sejam criadas vagas de acesso ao internato em número adequado de forma a possibilitar o ingresso destes profissionais na formação médica especializada, cumprindo os requisitos da idoneidade formativa definidos no Regulamento do Internato Médico”.

Desde 2010 que o número de médicos em formação tem vindo a crescer

O presente despacho foi publicado na semana em que mais de 2.197 médicos recém-licenciados iniciaram o ano comum e 1.642 começaram a formação especializada. Ao todo são mais de 3.800 os médicos em formação que entraram para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) neste arranque de ano, o maior número de sempre de ingressos de médicos em formação.

Em 2010 entraram 2.416 médicos, em 2011 2.607, e o número foi sempre subindo até aos 3.839 que agora se registam.

O ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, presente na cerimónia de receção do médico interno no Centro Hospitalar Lisboa Norte, na terça-feira, em Lisboa, afirmou: “Conseguimos ter uma formação profissional que hoje projeta Portugal como um dos países com melhor formação médica e de outros profissionais de saúde”.

Em comunicado enviado às redações, o candidato a bastonário da Ordem dos Médicos Miguel Guimarães pede a estes jovens médicos que “sejam exigentes na defesa da qualidade da formação médica”, que “procurem adquirir o máximo de conhecimento e de competências técnicas durante a formação”, que “sejam exigentes e responsáveis na aplicação prática da ética e deontologia” e “exigentes na defesa e aplicação das boas práticas e das regras da arte”, assim como “não hesitem em denunciar às autoridades competentes as insuficiências ou deficiências que condicionem negativamente a prática médica e a vossa formação”, entre outras recomendações.