Criar uma startup é ver um projeto “morrer e renascer cem vezes” até chegar a um produto. “É ligarem-te às sete da manhã ou às nove da noite a dizer que querem trabalhar e que alguma coisa não funciona”. Assim foi com a startup fundada por Miguel Lupi e João Gomes, em 2015, que quer, no fundo, “avaliar fraudes de vacas como se avalia uma fraude bancária”. O que é que isto significa?

A Faarm vende “transparência alimentar”, através de uma plataforma – a Muuu -, na qual, através de um clique, se pode conhecer o animal que deu o leite que está a beber ou a pessoa que ordenhou esse animal.

Ao mover uma vaca de uma exploração para outra é preciso dizer para onde vai e de onde veio. E nós criámos uma rede de explorações, onde depois resolvemos outros problemas, que melhoram o planeta”, refere Miguel Lupi, ao Observador.

Na Muuu, já é possível conhecer “centenas” de produtores e “mais de dez mil animais (gado bovino)” registados na plataforma online, gratuita, que está prestes a ficar disponível no Brasil, adianta o cofundador da startup, sem revelar números concretos.

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A Faarm havia de nascer de um projeto que falhou, em 2012, a Veggiesbox, uma espécie de Uber para a entrega de produtos agrícolas. “Nós tirávamos todos os intermediários e dávamos ao agricultor a possibilidade de ele vender os seus produtos diretamente ao consumidor, em vez de passar pelo supermercado ou por um revendedor”, conta o cofundador da Faarm. Não resultou. “Mas o falhar é sempre relativo”, admite. Por isso, o engenheiro florestal partiu para outras aventuras. Trabalhou na Portucel e na Agrogestão, sempre dedicado à gestão florestal.

Quando Miguel Lupi decidiu fundar a Faarm, em 2014, queria um cofundador que o acompanhasse no desenvolvimento de uma tecnologia para a agropecuária. Encontrou João Gomes, 33 anos, um engenheiro eletrónico com experiência na agrogestão (trabalhou na Hubel Agrícola, uma empresa de exploração de framboesas, no Algarve).

Quase dois anos passados até que, em janeiro de 2016, começaram a escrever as primeiras linhas de código daquilo que se transformaria na Muuu, uma tecnologia que facilita a partilha de informação sobre a origem e percurso dos alimentos que comemos todos os dias. O objetivo? Promover uma indústria alimentar mais justa e transparente. “E tem sido uma correria, uma loucura”, garante Miguel.

Da gestão ao marketing agrícola

A Faarm está incubada na Startup Lisboa e lançou a primeira plataforma a 15 de março de 2016. “Tivemos logo 200 e tal pessoas a utilizar o produto. Ligavam-nos a dizer ‘isto não funciona, isto também não’. Eu atendia o telefone e escrevia e o João estava ao lado a arranjar coisas na plataforma. Conseguimos fazer tudo sozinhos, porque tivemos sempre esse feedback das pessoas que falavam connosco todos os dias”, conta Miguel Lupi. A prova de que tecnologia e campo não estão assim tão distantes.

Podemos mostrar aos nossos consumidores no supermercado, no talho, de onde é que vem a carne”, diz o cofundador da Faarm.

Na Europa, todas as compras e vendas de animais, do nascimento à morte, têm de ser registadas, desde a doença das vacas loucas em 1998. O que a Faarm fez foi construir um sistema de análise de atividades em cima do já existente, que analisa “todas as atividades pecuárias com os animais. Todos os maneios, alimentação e tratamentos, compras e vendas”, explica Miguel Lupi.

Na prática, programadores ou os próprios utilizadores podem introduzir esses dados na plataforma. A Muuu analisa e compara-os com todos os referenciais de certificação e sustentabilidade do mundo, classificando cada exploração com um rating (uma nota) de boas práticas e informando depois onde é que cada produtor pode vender os seus produtos.

A visão foi sempre a aproximação do produtor ao consumidor. Um dos problemas, tanto para um como para o outro, é que se comprarmos uma covete de peito de frango num supermercado, não sabemos de onde é que ele vem. Por outro lado, para os produtores, ao não diferenciarem os seus produtos, não têm margem para vendê-los a um melhor preço”, explica o cofundador da startup.

Mas a solução que estava a ser desenvolvida pelos dois engenheiros era “muito igual” às que já estavam no mercado. Faltava sempre “aquele uau”, admite Miguel. “Começamos a ver formas de usar a internet e todo o poder da tecnologia para resolver estes problemas e dar a possibilidade ao produtor de escolher os clientes, além de ser o cliente a escolher o produtor a quem quer comprar”, explica.

Apesar dos avanços tecnológicos e do desenvolvimento da Internet, o líder da Faarm acredita que as explorações agrícolas estão ainda muito focadas na produção, ignorando “uma das principais formas de valorização dos seus produtos: o marketing e o desenvolvimento de uma marca”.

Por isso, a Faarm decidiu criar um departamento de marca e de marketing agrícola em cada exploração. Depois da introdução dos dados do animal (origem, alimentação, medicamentos, abate), é gerada uma página na internet onde cada produtor pode mostrar o seu rating e colocar conteúdo do dia a dia: fotografias dos animais, da equipa, dos produtos que vendem, onde é que os consumidores podem encontrá-los.

Brasil, Espanha, Irlanda e Reino Unido até à Web Summit

Em Portugal há cerca de 1,4 milhões de cabeças de gado. O Brasil, por exemplo, tem 220 milhões, e não tem uma sistema de rastreabilidade. A startup está, por isso, a preparar a entrada no Brasil. A Faarm recebeu, até ao momento, um investimento de 145 mil euros. Arrancou com capital próprio de cerca de 30 mil euros. Em setembro de 2016, com a vitória no Startup Lisboa Boost, teve acesso a 100 mil euros da Caixa Capital.

Durante o ano passado, a Faarm venceu também o Startup Simplex, o concurso de modernização administrativa do Estado, e marcou presença por duas vezes na entrevista final do Y Combinator, um dos maiores aceleradores de startups de tecnologia do mundo.

Candidatámo-nos ao Y Combinator só para começar a testar se tínhamos hipótese de lá ir e eles chamaram-nos logo. Começámos a bater código em janeiro e três meses depois chamaram-nos para ir. A plataforma não funcionava mas a equipa passou, a ideia passou, por isso voltaram a chamar”, confessa Miguel.

A previsão é lançar a aplicação em inglês e em espanhol até ao final de fevereiro, e chegar a produtores em Espanha, Irlanda e Reino Unido. “Até à próxima Web Summit queremos levantar uma ronda maior para crescer para o mundo inteiro. Queremos fechar e polir esta aplicação básica, gratuita, e desenvolver as funcionalidades pagas para provar o modelo de negócio”, explica. Transportar vacas de um lado para o outro tem emissões de carbono associadas, tem dinheiro associado.

A Faarm tem uma base de análise estatística de big data que transforma em valor com planos pagos para os produtores que querem profissionalizar. O sistema de rastreabilidade básico e a promoção de cada exploração online é gratuito. “Depois vamos fechar na gruta e cumprir as nossas métricas. Iterar, falar com os nossos utilizadores, desenvolver a nossa plataforma, polir o produto o máximo possível”, remata o fundador da Faarm.

*Tive uma ideia! é uma rubrica do Observador destinada a novos negócios com ADN português.