Um grupo de profissionais do cinema português está descontente com a forma como são escolhidos os júris dos concursos públicos que decidem a distribuição dos subsídios do Estado português. O protesto já tem alguns meses e agora obteve o apoio de várias figuras do cinema internacional, que assinaram uma Carta de Protesto e Solidariedade escrita por várias personalidades portuguesas ligadas ao cinema e endereçada ao governo português. As suas vozes foram ouvidas lá fora e o documento passou a contar com mais de 400 signatários estrangeiros, entre eles os realizadores franceses Laurent Cantet, Leos Carax, e Philippe Garrel, o espanhol Pedro Almodóvar, o finlândes Aki Kaurismaki, o tailandês Apichatpong Weerasethakul e o norte-americano Todd Solondz.

Segundo se lê na carta aberta, apesar de Portugal ser um país de pequena dimensão, sem mercado interno, e ser “raro o ano em que surja nas salas de cinema mais do que uma dúzia de longas-metragens nacionais”, a produção portuguesa é acarinhada pela crítica estrangeira sendo “elevadíssima a percentagem desses filmes com presença em festivais internacionais”.

Os artistas que assinam a carta lembram que, principalmente a partir dos anos 80, “o cinema português tem sido objeto de mostras e homenagens” quer através de prémios quer através da organização de retrospetivas de vários cineastas portugueses, “uns em atividade outros infelizmente já desaparecidos como João César Monteiro, Paulo Rocha, Fernando Lopes, António Reis, José Álvaro Morais, António Campos ou, claro, Manoel de Oliveira”. Um “milagre” que demonstra o potencial do cinema nacional mas que, ao mesmo tempo, põe a nu “a desproporcional visibilidade internacional no contexto de tão escassa produção”.

O mérito é partilhado entre artistas e políticas de fomento cultural que ajudaram à “produção de um cinema marcado por uma forte singularidade das suas propostas”, lê-se na carta, estabelecendo “as bases para lhe garantir liberdade criativa”. No entender dos proponentes, “a política cultural que permitiu este cinema e que abriu as portas à diversidade, assentou em Leis do Cinema e num Instituto Público, o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA), que as aplicou, organizando de forma continuada concursos públicos para o apoio financeiro à produção de filmes, com regras de participação transparentes e critérios de avaliação compatíveis com uma política promovida pelo Ministério da Cultura e com júris escolhidos pelo Instituto, cujo perfil é definido por lei como ‘personalidades com reconhecido mérito cultural e idoneidade’.”

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Assim — continua a carta –“foram chamados à função de júri cineastas e técnicos de cinema, bem como críticos, artistas plásticos, escritores, arquitetos, músicos, programadores culturais ou professores universitários para aprovarem os projetos de filmes”.

A partir de 2013 as coisas mudaram. As críticas recaem sobre o decreto-lei regulador da Lei do Cinema e sobre os atuais dirigentes do ICA, que se mostram “alérgicos à responsabilidade e desconhecedores do papel regulador que o ICA deve ter no processo [de escolha dos projetos de filmes]”. Segundo os signatários, o ICA transferiu “a tarefa da escolha dos júris para um comité onde estão representados todos os interessados no resultado dos concursos de apoio: associações profissionais, representantes das televisões, representantes dos operadores de audiovisual, entre outros” o que resultou na criação de “um comité corporativo” que indica ao ICA “os nomes dos júris que avaliam os projetos de filmes, num claro conluio de interesses em muitos dos casos entre nomeados e quem nomeia”.

Sistema “promíscuo e viciado”

Os 586 nomes que assinam esta carta — 150 deles portugueses — dizem que o atual Governo está “refém da pressão exercida por operadores da televisão por cabo” e, por isso, “um conjunto muito representativo de realizadores e produtores portugueses manifestou-se contra este sistema promíscuo e viciado, assegurando à tutela que se recusam terminantemente a fazer parte do processo de nomeações: não querem ter influência na nomeação de júris nem aceitam que outros interessados nos resultados dos concursos possam participar do processo”. Pedem transparência na nomeação de júris, “que só pode ser assegurada se a nomeação de júris regressar à exclusiva competência do ICA”. A carta acaba lembrando que “o Cinema Português não é uma questão exclusivamente nacional”.

Há vários anos que algumas associações do setor discordam de que seja a SECA a escolher listas de júris ao Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) e sustentam agora essa oposição com um parecer jurídico, segundo o qual aquela secção especializada tem apenas “funções meramente consultivas” e não pode tomar decisões, incorrendo numa ilegalidade.

Com o processo legislativo ainda em curso, o calendário de concursos de apoio ao cinema e audiovisual de 2017 não foi ainda publicado, nem o ICA divulgou a declaração anual de prioridades. No início de janeiro, num esclarecimento enviado à agência Lusa, o ICA explicava que tenciona abrir concursos até ao final de março.

A 7 de fevereiro, segundo a Lusa, o secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado, garantiu que “não se esgotou” o diálogo com as associações que contestam a nova regulamentação e que o processo ainda não está fechado.

Miguel Honrado referiu que a SECA “continua a ser sobretudo um organismo de aconselhamento do secretário do Estado e do ministro da Cultura”, cujas propostas de composição de júris para a análise dos concursos não têm caráter vinculativo, o que está apenas reservado ao Governo. O protesto ganhou maior dimensão durante o Festival de Berlim — que ainda decorre — onde os representantes do cinema nacional se recusaram a participar num jantar com o secretário de Estado da Cultura. Este domingo publicaram esta carta de protesto, que foi divulgada também no jornal Libération.

Nomes internacionais juntam-se ao protesto

A lista de pessoas do cinema internacional que se juntaram ao protesto é vasta e conta com nomes como o Aki Kaurismaki, realizador finlandês que reside em Portugal e que assinou filmes como “Le Havre”, Agnès Jaoui, atriz, realizadora, guionista e cantora, conhecida pelo seu papel em “Um Ar de Família”, guionista de “Smoking/Not Smoking” e “O Gosto dos Outros”. Apichatpong Weerasethakul também assina a carta. O realizador tailandês venceu a Palma de Ouro em Cannes com “O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores”.

Da lista constam ainda Frédéric Bonnaud, diretor da Cinemateca Francesa, Dennis Lim, diretor artístico do Festival de Cinema de Nova Iorque, Sylvie Pras diretora do serviço de cinema do Centre Pompidou, Barbet Schroeder, realizador de origem iraniana radicado em França. Outros nomes conhecidos são o de Christophe Honoré, escritor, argumentista e realizador francês considerado pela crítica o herdeiro da Nouvelle Vague, do realizador espanhol Pedro Almodóvar, Philippe Garrel, realizador francês ou Todd Solondz, realizador e guionista norte-americano.