Há um subgénero da comédia cinematográfica, a comédia do embaraço, que tem já uma considerável colecção de títulos, sobretudo americanos. São filmes onde o herói ou a heroína passam por uma série de situações pessoais, sentimentais, profissionais ou sociais constrangedoras, por causa da personalidade excêntrica, do comportamento inadequado ou das manias insofríveis de um familiar, um amigo, um vizinho ou um colega de trabalho. “Toni Erdmann”, da alemã Maren Ade, é uma rara comédia do embaraço feita fora do universo do cinema anglo-saxónico, e tinha tudo para passar totalmente despercebida fora do seu mercado natural. É um filme alemão, dura quase três horas, tem actores pouco ou nada conhecidos fora do espaço germânico e não cultiva o riso alvar, fácil, imediato, habitualmente associado a este formato.

[Veja o “trailer” de “Toni Erdmann”]

Apesar disso, transformou-se no filme mais falado do último Festival de Cannes, onde competiu pela Palma de Ouro, e numa das coqueluches europeias de 2016, ganhou uma pilha de prémios em todas as latitudes (entre eles, cinco galardões do Cinema Europeu), está candidato ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro e vai ter um “remake” americano, com Jack Nicholson e Kristen Wiig. Um verdadeiro fenómeno. É a história de Winfried Conradi (Peter Simonischek), um professor de música viúvo, reformado e muito amigo de pregar partidas, daquelas que envolvem cabeleiras postiças, dentes falsos e almofadas que emitem sons embaraçosos. Winfried tem uma filha, Ines (Sandra Hüller), uma super-executiva solteira e viciada no trabalho, daquelas que pululam por esta Europa cada vez mais homogeneizada e tecnocrática, e que está em Bucareste.

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[Veja a entrevista com a realizadora Maren Ade]

Winfried acha que Ines leva uma vida chata, triste, sem amor nem humor, toda ela preenchida pelo trabalho, e que acabou por os separar, não só geográfica mais também humana e emocionalmente. Por isso, vai visitá-la a Bucareste, onde tira da mochila todo o seu arsenal de acessórios ridículos e assume uma identidade falsa, a do Toni Erdmann do título, um “life coach” de gente famosa, para a recuperar para si, mas também para uma vida mais “humana” (“Afinal, que tipo de ser humano és tu?”, pergunta-lhe Winfried/Toni a certa altura) usando a arma do riso. E tudo isto na presença dos amigos, dos colegas, dos clientes e do namorado de Ines. Conseguirá ele reconquistar a filha sem que esta se zangue com o pai?

[Veja a entrevista com Sandra Hüller]

Mas um dos grandes momentos de comédia do embaraço de “Toni Erdmann” não é protagonizado por Winfried/Toni, mas sim por Ines. Estão ambos em casa de uma colega desta, a abarrotar de familiares, e o pai, que disse à dona da casa ser o embaixador alemão, convence a filha a cantar “The Greatest Love of Hall”, de Whitney Houston. O que ela faz, entre o sofrido e o esforçado, saindo logo de cena sem agradecer as palmas – porque em vez de a acharem ridícula e despropositada, os presentes até gostaram de a ouvir. É uma sequência que dá o mote para o filme, que mantém, do princípio ao fim, um registo cómico neutro, em surdina, sem explosões de “slapstick” nem “gags” espalhafatosos, que encontra reciprocidade no estilo visual prático, asséptico e distanciado de Maren Ade, e nas próprias personagens.

[Veja uma cena de “Toni Erdmann”]

Tudo em “Toni Erdmann” funciona de forma estranhamente insólita e muito pouco ou nada previsível. Os esforços de Winfried/Toni para fazer rir a filha são embaraçosos, sim, porque patéticos e sem piada nenhuma, Ines é tão glacial e controlada por causa das responsabilidades do seu trabalho, que nunca perde as estribeiras, e numa das melhores cenas do filme, uma festa de aniversário nudista, a comédia assenta no visível incómodo de todos os participantes, e no facto do único que está vestido, usar um traje do folclore búlgaro que mais parece um disfarce de Abominável Homem das Neves. Estamos numa comédia de risinhos nervosos e não de gargalhadas sonoras.

[Veja a realizadora e os dois intérpretes no Festival de Nova Iorque]

A verdade é que sob a sua superfície anti-convencional, o seu “look” clínico e o seu registo átono, “Toni Erdmann” oculta um coração tradicional e fiel a um formato consagrado pelo tempo e pelo público. O da boa e velha comédia dramática em família, onde um progenitor solitário procura reencontrar-se com o/a descendente que a vida ou o trabalho levaram para longe e se perdeu numa existência alienada de tudo o que é importante. Acima de tudo, do afecto dos seus. Com a conivência dos dois óptimos actores principais, que nunca perdem o pé das suas personagens nem tentam torná-las facilmente simpáticas ao nossos olhos, Maren Ade rodou, em “Toni Erdmann”, uma comédia de reconciliação familiar de boa cepa, só que em modo enviesado “de autor”. E passe o cliché, um daqueles filmes que primeiro se estranha – e muito – mas depois acaba por se entranhar – e bem.