Em dois dias de debate na Câmara Alta do Parlamento britânico falaram mais 190 membros, numa das mais longas sessões de leitura alguma vez registadas na Câmara dos Lordes. Até às primeiras horas da madrugada houve tempo para protestar, apoiar, rebater ou emendar o projeto de lei que já tinha passado no Parlamento e que autoriza a primeira-ministra Theresa May a informar a União Europeia, assim que o deseje, que o Reino Unido está pronto para iniciar o processo de saída.

É aquilo a que muitas vezes se chama de “puxar o gatilho” ao Artigo 50, o artigo do Tratado de Lisboa que prevê a saída de um dos membros do bloco, mas que tem que ser “acionado” pelo próprio país.

Por já ter sido aprovado no Parlamento, com uma clara maioria de 494 votos a favor e 122 contra, é pouco provável que o projeto não venha a ser fixado em lei mas, teoricamente, o pingue-pongue da Camâra Alta para a Câmara Baixa pode durar indefinidamente. Os membros da Câmara dos Lordes propuseram mais de 12 emendas ao projeto de lei do governo conservador de Theresa May e espera-se que pelo menos duas possam passar já que os Conservadores, apesar de serem o grupo com mais representantes em ambas as câmaras, não detêm a maioria dos assentos em nenhuma delas.

Quais são as emendas propostas pelos Lordes?

As preocupações expressas pelos membros da Câmara Alta não diferem muito daquelas que já tinham desencadeado acesas discussões no Parlamento no início de fevereiro, quando a lei relativa à data para o Brexit foi aprovada. Da esquerda à direita, quase todos os membros dos Lordes usaram da palavra, mostraram-se apreensivos em relação à incerteza que ainda turva o futuro do Reino Unido fora da União Europeia e por isso as emendas incluem pedidos para que governo vá ao Parlamento explicar regularmente o avanço das negociações com a UE e outros para que o Reino Unido permaneça no mercado único. Há ainda uma que pede um segundo referendo.

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O Lord Dick Newby, líder dos Liberais Democratas na Casa dos Lordes, classificou a abordagem do governo ao Brexit como “nada a menos que desastroso” e pediu um segundo referendo. “Para todos nós que temos mantido a Europa no centro das vidas políticas todos os dias sentarmo-nos em cima das mãos nestas circunstâncias é impensável e inconsciencioso. Temos um país muito mais dividido na questão do Brexit de sempre. A raiva dos que queriam sair é agora igual à raiva daqueles que querem ficar — particularmente os mais jovens”, disse Newby.

Abertura de mais um ano parlamentar na Câmara dos Lordes. Ray Collins – WPA Pool/Getty Images

É pouco provável que alguma destas três seja aprovada — e assim anexada ao projeto para ser discutida nos Comuns — mas existem outras duas que podem chegar a seguir de novo para o Parlamento: uma pedindo que os direitos dos cidadãos europeus que vivem no Reino Unido sejam salvaguardados e outra que haja um voto ao pacote final de medidas acordadas entre Theresa May e os parceiros europeus antes de estas entrarem em vigor.

Estes anexos poderão ser aprovadas quando os Lordes voltarem a reunir dias 7 e 8 de março, o que forçará os deputados a refutá-las de novo na semana seguinte. A legislação final deverá estar pronta dia 15 de março.

William Hague, que foi secretário dos Negócios Estrangeiros, também falou nos Lordes e pediu que se respeitasse o resultado: “Estas tentativas de voltarmos a organizar um referendo, da qual voltamos a falar nos últimos dias, são um erro enorme. Pedir às pessas que se sublevem — nas palavras do ex-primeiro-ministro Tony Blair — é um erro enorme”, disse o conservador.

Também Lord Butler, que durante dez anos esteve à frente da gestão central dos serviços públicos britânicos, disse que era preciso um segundo referendo para “estabelecer uma visão atualizada daquilo que pensa o eleitorado britânico depois de entendermos bem aquilo que Brexit deverá significar”.

De dentro do próprio partido de May também chegaram avisos. A baronesa Ros Altmann, disse que “podemos estar a por a prosperidade e a segurança da Grã-Bretanha em risco se chgarmos lume a este rastilho que é a calendário de dois anos para sairmos da Europa”. Já Angela Smith, líder do partido trabalhista na Câmara Alta prometeu “não bloquear nem frustrar a legislação em questão” mas confirmou que o grupo que dirige iria, como de facto acontecer, propor diversas mudanças ou anexos à lei.

Pouco depois de conhecido o resultado do referendo, milhares de pessoas sairam para a rua em todo o país em protesto. Jeff J Mitchell/Getty Images

Os ecos de dúvida chegaram também através da intervenção Lord Browne of Eaton-under-Heywood, que é independente e foi juiz do Supremo. Browne disse que “apoiava o projeto de lei” mas “com as maiores reservas”. Assumindo que a saída do bloco pode prejudicar o interesse nacional, o ex-juiz disse que “quaisquer que sejam os danos que Brexit possa provocar, serão sempre menos do que aqueles que, acredito, seriam feitos à confiança do publico no processo político”.

E depois de aprovadas as emendas?

A proposta será devolvida aos Comuns, onde os deputados irão discutir as mudanças introduzidas pelos Lordes. Dado que estas “sugestões” já tinham sido discutidas no Parlamento — e aí rejeitadas — é pouco provável que os deputados aceitem estas. As mudanças seriam então rejeitadas e o projeto de lei voltaria para os Lordes: o tal jogo de pingue-pongue.

Então a Câmara Alta pode adiar Brexit para sempre? Tecnicamente sim, mas na prática é mais difícil. Angela Smith contudo também já disse que não haverá “longos jogos de pingue-pongue” entre as duas casas. Não há um prazo limite para este “jogo” ser dado como terminado, mas como enquanto uma câmara delibera a outra tem de esperar, não deve durar muito tempo.