Sob título bem encontrado, “A boa arte da controvérsia” e premiando-o com 3 estrelas, um tal Vasco Rosa publicou, na edição de 19/Fevereiro do “Observador” pelas 19:43h, comentário, azedo e manhoso, ao meu livro Arte Portuguesa no Século XX – Uma História Crítica, editado na Coral Books (2016). Não reconhecendo valor de polémica — que havendo mereceria outra atenção em considerações e refutações — surpreende-me, porém, que o “jornalista” transporte, para dentro de publicação séria, de que sou leitor, o estilo inquisitorial da bravata fácil que ingenuamente julgara erradicado do jornalismo português desde que se aposentou Alexandre Pomar e, com ele, a vociferação que, a fingir de exercício crítico, praticava, em claro abuso de poder, culturalmente sancionado pelo facto de ser filho de grande pintor, contra tudo do que não gostava, como se isso gerasse qualquer valor. Estilo que, todavia, importa denunciar, por envenenar a função ética do jornalismo. Associando mediocridade de pensamento e argumentação com retórica insidiosa, só procura suscitar no leitor menos informado a impressão de assistir a um debate de ideias e ao exercício crítico legitimado pelo conhecimento e a experiência, com o que não é de facto mais do que pretensiosa intriga de comadre. O sr. Rosa, cuja única atribuição conhecida é a de passar por jornalista num jornal de referência, fala como entendido na história da arte e da cultura e, do alto dessa auto-convicção, que nenhuma qualificação académica ou de experiência no campo sancionou, verbera contra trabalho feito nesse âmbito com provas dadas há 35 anos. Só assim se compreende que, sem pudor ou sentido jornalístico do razoável, entenda aviar, em meia dúzia de linhas mal cozidas, obra de 500 páginas, que carrega trinta anos de investigação e estudo e dois anos de escrita. Não respondo, pois, por o tomar a sério, mas por me chocar que, fora do lodaçal do facebook, se produza, a coberto de jornalismo, o que constitui falsificação do mesmo, por assentar apenas na observação insidiosa, na manipulação de frases tiradas de contexto, no juízo e sugestão de intenções que ficam por provar e, mais em geral, na afirmação do disparate erguido ao estatuto de crítica. Além de procurar, por hábil dosagem de reconhecíveis efeitos de retórica, despertar, em aparência de recensão, o ressentimento no leitor desprevenido, antecipadamente o agoirando contra o que ataca sem conhecimento, e prejudicando, assim, a recepção de uma obra que merece decerto outra seriedade na leitura. Sabemos como ressalta ainda o exemplo dos que, frustrados por nada de competente saberem realizar, se fazem de jornalistas para destruir o que se faz com seriedade e claro propósito, refugiando em cega disputa a inveja de integrar o espaço do debate académico, crítico ou mesmo literário, que não souberam, de outro modo, alcançar.

Há uma diferença essencial entre crítica e difamação, mesmo se o sr. Rosa o desconhece. E a primeira, no que respeita a este livro, tem vindo a ser feita nos lugares próprios, por relevante conjunto de personalidades de honesta formação, como os Professores Villaverde Cabral, Delfim Sardo, Margarida Acciauiolli, António Pedro Pitta, José Jiménez ou João Ribas, vice-director de Serralves, alguns dos quais citados em abono do insulto.

Tomarei então algumas breves passagens para as analisar à luz do que afirmei, e deixar assim mais clara a manhosa bravata deste comentador, já que “é nosso dever falar” sempre que a mesquinhez quer tomar lugar.

Começa o triste argumentário por colocar sobre idêntica plataforma o que são exemplos distintos do exercício crítico sobre arte em Portugal: J.A. França, Rui Mário Gonçalves e J.M. Fernandes Jorge, o primeiro historiador, o segundo crítico, o último poeta, com perspectivas diferenciadas sobre as formas dessa relação. Referindo-os quais expressões de uma mesma época — quando correspondem, quase, a três gerações — alude o comentador à quase “saudade de um futuro” que irá finalmente organizar o caos deste nosso pobre tempo, em que o desaparecimento (?) dessas figuras teria operado o efeito devastador de uma catástrofe que só a história futura haverá de corrigir.

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Tal tom lamentoso, de vaga ressonância apocalíptica, subtilmente prepara a insídia das afirmações seguintes: “Um dia chegará em que toda essa época [a nossa] será avaliada (…) algo que só o largo tempo histórico ajudará a fazer”. Deixa-nos, assim, o nosso profeta, entregues ao que seria um tempo de injustiças e desgraças (a peste, fome e guerra, de que todavia generosamente nos previne) de que nada será resgatado, já que é um tempo de usurpações onde “alguns parecem ter mais apetite, pressa e agilidade do que outros para a dança das cadeiras tutelares”, alusão vaga e sem fundamento qualquer, rematada de enigmática consideração: “cada um nasce para o que é”, em inesperado recurso, próprio de quem já não tem argumentos, ao “bem diz a sabedoria popular”. E, na verdade, cabe perguntar, para que haveria cada um de nascer, senão para o que é…

O tipo de argumentação evidencia a falta de seriedade de quem o usa. Depois do prólogo tremendo, digno de João e de Lucas, preparado está o terreno para a denúncia: “Pinto de Almeida nunca deixou em mãos alheias os créditos obtidos por um persistente trabalho crítico focado num pequeno núcleo de artistas plásticos da sua predilecção”. Que significa isto? Que deveria ter tido outras persistentes predilecções? Ou antes deixar-me abater, silencioso e modesto, à espera de que o anjo da História — quem mais senão o próprio comentador, reconhecível finalmente nesse papel? — descesse sobre os meus ombros cansados e doridos, e reconhecesse, enfim, no meu pobre esforço prometaico, o direito a figurar no céu dos historiadores e críticos que, do alto do seu vasto juízo vingador, ele tolera?

Paradoxalmente porém, logo a seguir, aventa o anjo do Senhor, com a displicência de quem colhe exemplos menores entre lírios do campo, que “a ele [BPA, who else?] se devem, quase em exclusivo, alguma merecida actualidade crítica em volta de Fernando Lanhas e Nadir Afonso — para já não falar de Ângelo de Sousa — e a revelação impactante dos desenhos de Maria Antónia Siza.” Mas afinal em que ficamos???

Vem depois carinhosa observação, todavia escondendo nova intriga: “A sua bibliografia é de certa forma extensa, e o seu nome surge amiúde em catálogos de galerias e obras colectivas sobre artistas plásticos portugueses de algum renome. Tem sobre colegas de ofício formados nos mesmos anos e quase que com os mesmos mestres, a vantagem formal de ser professor catedrático em Belas Artes (há apenas dois outros).” Primeiramente, uma bibliografia ou é, ou não é, extensa. Não há certa forma de o ser (ou de o não ser). Por outro lado, não se sabe de textos críticos que figurem em catálogos e obras colectivas que não fossem pedidos ou pelos próprios artistas (neste caso e pelos vistos de “algum renome”, mas o que significa isso?), ou pelos responsáveis institucionais que os defendem. Mas não saberá isto o nosso pregador? Como chegou então a jornalista, se nem informar-se sabe, e pelos vistos?

Depois, ao reduzir a uma mera “vantagem formal” o que é, de facto, título académico difícil, raro e obtido em provas curriculares sucessivas e eliminatórias inter-pares, percebe-se como aqui se esconde a inveja dos que o obtiveram na praça clara e trabalhosa da boa tradição académica que, porém, não só aparece desvalorizada como, e sobretudo, sugerida a mero jogo de estratégias e oportunismos vários. Como terá obtido a sua licenciatura? Ou desconhece o escriba, quase acocorado, que a Universidade portuguesa, hoje europeia, não acolhe (ainda!!!) por mero favor os que, putativamente como ele, arranjam refúgio em jornais?

Mas destituído, enfim, pelo inquisidor, de qualquer mérito no plano da investigação académica e do reconhecimento pelos pares, que me julgaram, mas a que a sua justiceira espada decapitou em três penadas, avisada e temperada por saber jamais demonstrado, resta-me ser confrontado com uma empobrecida condição: a de não ser detentor, ao contrário de outros, numerosos e abundantemente citados — esses decerto os “bons” deste filme inenarrável — de “carreira internacional em museus” (mas porque haveria de a ter seguido, se escolhi antes a Universidade?), “sequer doméstica”. Desconhece o grande exterminador, porque, como fazem normalmente os tolos, confunde a própria ignorância com a realidade, que não apenas exerci, e exerço ainda, a curadoria (“doméstica e internacional”, para o que basta lembrar a Colecção do MEIAC, Espanha, 1994, ou o demais curriculum publicitado em livros, e na Net), como longamente escrevi mas não leu em inúmeras publicações internacionais de referência, e realizei dezenas de conferências.

Desconhece, como se tal informação não estivesse disponível, cargos institucionais desempenhados fora da Universidade, e muito trabalho, desenvolvido dentro e fora do País e, sobretudo, o facto de ter publicado, nos últimos 25 anos, cerca de uma dezena de livros de ensaio sobre arte, além de ter prefaciado mais de 500 catálogos de exposições, em galerias e instituições, na maioria a pedido dos próprios artistas “de algum renome”, que condescendentemente trata como exemplos menores. Para adiante descobrir, em meia dúzia de exemplos alegadamente por mim esquecidos (num rol de centenas que são referenciados), alguns que não comentei neste livro, apesar de na maioria não caberem no âmbito que explicitamente deixei definido no prefácio. Gérard Castello-Lopes ou David de Almeida não são, como ali se diz, “negligenciados”, já que escrevi para ambos, em prefácios publicados: simplesmente não estão dentro do corpo definido para esta história crítica. Um, por ser (grande) fotógrafo, o outro, sobretudo (grande, também) gravador.

Concede-me o biógrafo, porém, alguma virtude ao referir o “arrojo de escrever sozinho uma história da arte portuguesa no século XX”. Mas cabe perguntar: porquê arrojo? Deveria, talvez, ter-lhe pedido autorização antes? E porque não sozinho? Queria-me antes acompanhado? Ou gostaria, quem sabe, de ter colaborado? Mas de que fala afinal o homem? A partir de que conhecimento, ou experiência concreta reconhecível no campo da arte ou da cultura? E que arrogância, que leviandade são estas que, a coberto da imprensa, se bojardam para, face a trabalho sério e corajoso que ninguém sustentou, vêm tanto denegri-lo como, de repente, apodá-lo de “inesperado grande passo em frente que merece ser saudado”? Mas saudado por quem? Por este pseudo-jornalista cujas motivações obscuras permanecem por compreender? E que não articula pensamento, crítica, ou observação digna de registo? Que sustenta, do frágil altar de falinhas mansas da sua missinha miserável que a minha História da Arte Portuguesa no Século XX deveria —como a de França de que justamente se distancia, explicando eu porquê — atender a um modelo enciclopédico que integrasse também a arquitectura, o design, a fotografia, as galerias e o cinema, quando o seu propósito fica esclarecido desde início como referido às artes ditas visuais ou plásticas? Não leu, ao menos, o longo prefácio metodológico que abre o livro?

E vem ainda, nesse jogo intriguista, referir como contra exemplos, livros no prelo — um dos quais aliás (de C. Rosendo) aparece citado no meu por o conhecer, já que foi tese de Doutoramento por mim co-orientada! — E ignora as 200 notas de rodapé que referem inúmeras publicações portuguesas, monográficas e ensaísticas, para o reduzir à mentira de “que dispensa bibliografia e raramente cita — ou confronta — opiniões alheias”? Mas de que fala a rosada figura?

Quem pode, sem cair no absoluto ridículo, escrever coisas como: “alguma parcimónia lúcida é-lhe exigível, para que o livro seja mais sobre o tema em causa do que sobre o seu próprio autor”? Que nível de prepotência e de desrespeito é este, a que se arroga o cronista, não sei com que motivações?

Não se deve, a gente como esta, pedir parcimónia ou lucidez, porque jamais a terá. Deve-se apenas observar, talvez, sem jamais sair do lado da seriedade, que tais discursos e tal retórica sustentam o obscurantismo que, infelizmente, continua a grassar no reino, contribuindo já não para o que Pessoa outrora chamou “o acaso mental português”, como antes para o que, objectivamente, constitui bem pior, e a que chamarei o “atraso mental português”.

Texto de Bernardo Pinto de Almeida, autor de “Arte Portuguesa no Século XX. Uma história crítica”