Era sábado. O lugar parecia estranho, tendo em conta que era a Voz do Operário, território de esquerda a usar pelo concorrente da direita à Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa. O simbolismo era evidente. No dia anterior, os deputados tinham tomado posse e os partidos de esquerda realizavam a primeira votação no novo contexto, fruto do entendimento para viabilizar o Governo de António Costa: a eleição de Ferro Rodrigues como presidente da Assembleia da República. O clima de crispação política continuava a subir para níveis alarmantes.

Foi nestas circunstâncias que Marcelo Rebelo de Sousa fez o principal discurso de campanha sobre a interpretação dos poderes presidenciais: falou durante 55 minutos como candidato, constituinte, ex-líder partidário e como professor de Direito Constitucional. Foi um discurso para ficar como referência e marcar o mandato, ideal para analisar no futuro e, por essa razão, regressamos a ele esta quinta-feira, em que o Presidente assinala um ano da sua tomada de posse. Lidas ou ouvidas de novo, as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa ganham mais forma e sentido. Ou não? A cada excerto do discurso que destacamos corresponde um comentário sobre o que fez o Presidente em relação ao que o candidato disse.

A derrota do apelo aos consensos e a legitimação de BE e PCP

“Escolhi esta sala [na Voz do Operário], porque faz parte do património simbólico do nosso país, símbolo de luta pela liberdade e igualdade, pelos direitos laborais e participação cívica.”

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Marcelo Rebelo de Sousa justificava assim a escolha da Voz do Operário para o discurso mais importante da sua campanha, para dar o sinal — que se mantém até hoje no exercício da sua presidência –, de que, apesar de ter nascido e sido criado numa família da direita salazarista e marcelista, apesar de ter sido fundador e líder de um partido da direita democrática, não tem complexos em relação à esquerda mais à esquerda: Bloco e PCP. Nisso tem sido coerente.

“[Uma das tarefas do Presidente] é criar convergências onde já existiram e deixaram de existir, onde não existiram. Alargar as convergências para tornar a vida dos portugueses mais previsível e não mudar todos os quatro anos. Para não haver mudanças todos os anos. Por exemplo, no sistema de avaliação educativa, por exemplo na rede hospitalar, por exemplo na sustentabilidade da Segurança Social, no ordenamento judicial, ou nos quadros fundamentais da função pública. É trabalhar para se recuperem os consensos interrompidos e se alarguem esse consensos”.

O Presidente da República começou o mandato sob o signo do apelo aos consensos, uma constante nos seus discursos cuja intensidade se foi dissipando com o tempo por ter caído no vazio. Marcelo apelou a consensos na descentralização, na saúde, na educação, na recapitalização da Caixa, enfim, consensos sobre tudo e mais alguma coisa, até acabar por aludir como metáfora ao consenso de biliões de neurónios como exemplo dos outros consensos políticos que ele não conseguia ajudar a estabelecer. Uma das derrotas políticas do primeiro ano de Marcelo Rebelo de Sousa é exatamente esta. A palavra costuma ser aplicada no sentido de Bloco Central, ou seja, PS e PSD, para as políticas não mudarem radicalmente com as mudanças de Governo. Mas, na realidade, tem sido impossível pôr António Costa e Pedro Passos Coelho a conversarem sobre temas para gerarem políticas comuns. Aliás, tem sido impossível pôr Costa e Passos a dialogar, ponto. O eixo político está à esquerda como nunca esteve desde 1976, e os parceiros do PS não veriam com bons olhos entendimentos preferenciais dos socialistas com a direita. Neste caso, o Presidente andou a fazer pedagogia para o boneco e perdeu a aposta que também serviria para recentrar o eixo político.

“Os excessos [da Revolução] traduziram-se, de quando em vez, em dividir os portugueses em patriotas e não patriotas, em bons e maus portugueses, democratas e anti-democratas, entre os que teriam exclusivo acesso ao poder e os que seriam marginalizados eternamente do poder. Passaram mais de 40 anos. Não queremos voltar a esse tipo de divisões entre os portugueses. Somos todos portugueses. Cabemos todos na democracia, temos todos a plenitude dos direitos constitucionais e de participação (…) O debate é legitimo, mas tem de ser feito com serenidade, com compreensão, sem exclusões e sem confundir adversários com inimigos. Uma coisa é a política dos adversários, outra a dos inimigos.”.

No contexto em que falava naqueles dias – em que se formava a futura “geringonça” – Marcelo Rebelo de Sousa queria aparecer como o anti-Cavaco que, ainda em Belém, fizera intervenções hostis à solução de esquerda que se estava a formar contra a sua vontade expressa. O candidato podia ser de direita, mas admitia que os partidos de sinal contrário — neste caso PCP e Bloco — faziam parte da democracia portuguesa tanto como os outros. Naquele momento, em que se especulava sobre o que faria Marcelo se chegasse à Presidência, o candidato surpreendeu ao tentar normalizar as instituições desse ponto de vista. Já no exercício do cargo pode dizer-se que conseguiu esse objetivo de não exclusão da esquerda radical, apesar desse esforço permanente de não hostilização desagradar à sua base tradicional de apoio. Não é fácil encontrar grandes críticas do Presidente da República ao Bloco ou ao PCP ao longo deste ano. Na semana em que se assinalou um ano de Governo, em novembro passado, Rebelo de Sousa até disse que “tudo o que seja configurar um centrão artificial imposto na governação do país seria pouco clarificador”. Neste domínio, Marcelo tem mantido a linha de ação.

Marcelo contra “centrão artificial”, faz elogio à solução de Governo

Um Governo fraco faz de Marcelo um presidente forte

“A pergunta é: como fazer isto? Com um presidente presidencialista? Com um presidente parlamentarista puro? A Constituição responde. Nem com um nem com outro”.

De ser um Presidente apagado ou parlamentarista ninguém o pode acusar. Apesar de haver muita gente que lhe aponta algumas ultrapassagens ao limite dos poderes presidenciais, Marcelo invocou duas situações extremas no discurso. O Presidente não é um nem outro, nem parlamentarista nem presidencialista. Mas, tirando Ramalho Eanes com as circunstâncias próprias da Constituição antes da revisão de 1982, pode afirmar-se com alguma segurança que Rebelo de Sousa é, desde Mário Soares, o Presidente mais ativo e interventivo no primeiro ano de mandato. Ele próprio antecipou o tipo de presidência que ia exercer tendo em conta a situação política nas frases do discurso que se seguiram.

Quando Marcelo pisou o risco dos seus poderes

“Se houver uma maioria absoluta de um partido ou coligação e com um líder forte, o Presidente tende a apagar-se. Se for uma maioria absoluta com uma coligação instável o Presidente tem mais peso. Se houver uma maioria relativa, o Presidente ganha ainda maior relevo. Se houver crise nos partidos, cisões e instabilidade no Parlamento, o Presidente pode chegar a ter um poder particularmente decisivo, embora sempre no respeito da Constituição. Conta muito o estilo do Presidente.”

O Presidente é tanto mais forte quanto mais fraco for o Governo, e aqui o candidato antecipou o cenário em que ia trabalhar. Marcelo Rebelo de Sousa tem sido um Presidente com muito “peso”, com enorme “relevo” e com “um poder particularmente decisivo” em vários momentos ao longo deste ano. Porque não é só o seu estilo que “conta”. A solução governativa dá-lhe jeito: um primeiro-ministro cujo partido não foi o mais votado, que perdeu as eleições, aliado a duas forças políticas de extrema-esquerda torna o Palácio de Belém determinante. A teórica fragilidade do Governo oferece a Marcelo uma preponderância que não teria se houvesse uma maioria absoluta ou teoricamente estável.

No discurso de tomada de posse, há um ano, Marcelo estabeleceu uma noção de boa medida de uso dos seus poderes. Nem muito nem pouco: “Sem querer ser mais do que a Constituição permite. Sem aceitar ser menos do que a Constituição impõe”.

Mas pelo menos em três casos, o Presidente levou os seus poderes ao limite, para não dizer que os extravasou, o que dificilmente seria possível com um Executivo forte. Atropelou o Governo quando levou o ministro da Cultura para o Teatro da Cornucópia para um diálogo infrutífero de salvação da companhia. Entrou no domínio dos poderes parlamentares quando fez uma espécie de parecer sobre as dúvidas acerca da entrega das declarações de rendimentos dos gestores da Caixa Geral de Depósitos ao Tribunal Constitucional: escreveu que se o TC não lhe desse razão, a Assembleia da República devia legislar nesse sentido. O terceiro caso foi quando chamou Mário Centeno a Belém e ao fim da noite emitiu um comunicado a dizer que aceitava a confiança do primeiro-ministro no ministro das Finanças apenas por “estrito interesse nacional”. O texto era assassino para Centeno e o Presidente deixou o ministro ainda mais fragilizado do que já estava. Só um presidente forte o poderia fazer, sobretudo com um primeiro-ministro cooperante e não adverso a Belém.

“O PR tem um poder muito importante, e a que se liga pouco, que é o poder de magistério, isto é, de influencia: pelo que diz, pelo que propõe, pelo que intermedeia. Este poder nem sempre é exercido publicamente. Para ser eficaz, deve poder ouvir a toda a hora os partidos políticos, setores da sociedade, fazer pontes, esbater choques, estimular entendimentos. Muitas vezes pensa-se que os problemas são só de ideias e ideológicos e doutrina. Mas não são. São também muitas vezes falta de diálogo.”

A presença massiva de Marcelo Rebelo de Sousa na comunicação social ajuda ao poder de magistério e influencia aqui enunciado. O que diz, é ouvido. Quando avisa, na maior parte das vezes produz efeito. Por exemplo, quando Frankfurt chumbou oito nomes da administração da Caixa Geral de Depósitos, o Presidente disse que não aprovava eventuais alterações ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras para que os administradores fossem readmitidos. O Governo acabaria por nunca avançar com essa ideia. Quanto à intermediação com figuras envolvidas em polémica, há um exemplo fresco desta semana: a audiência secreta ou discreta ao governador do Banco de Portugal, Carlos Costa. A informação foi tornada pública mas nunca confirmada oficialmente. Também o fez ao receber António Lobo Xavier, para ver os SMS de António Domingues trocados com Mário Centeno. Exerceu, também, essa magistratura, ao ter recebido Assunção Cristas e o CDS quando se queixaram de mau funcionamento do Parlamento, mas almoçou antes com Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República. Neste aspeto, os pressupostos da candidatura em relação ao uso deste poder abstrato estão a ser cumpridos com bastante intensidade e por vezes com excesso de voluntarismo: como quando o Presidente volta à figura de comentador e, por exemplo, responde a Teodora Cardoso a propósito do “milagre” do défice que milagres só em Fátima.

“Este é o papel do Presidente: esbater conflitos, aproximar. Tem de ser exercido muitas vezes de forma discreta para ter resultado. Recordo papel do Presidente Sampaio quando eu estava na oposição, tentando aproximar-me do primeiro-ministro António Guterres. Foram muitas diligências, e pequenas e grandes intervenções, sobre a Europa, o euro, a revisão constitucional, ou o Orçamento do Estado.”

Não podia ter falhado mais. A relação que Marcelo Rebelo de Sousa tem com o líder da oposição, Pedro Passos Coelho, não se pode comparar com a relação que ele próprio tinha com Jorge Sampaio. O então presidente passou a levar um copo de água para a cama, para dar um gole quando Marcelo, líder do PSD, lhe telefonava às três da manhã. Não se exigia telefonemas de madrugada a Passos Coelho, mas não existe química, nem confiança, nem admiração entre os dois homens. O Presidente não conseguiu ter essa relação especial com o líder da oposição. É verdade que Passos não deu espaço a Marcelo, e passou uma série de tempo sem ir às audiências com os partidos em Belém. Mas as críticas veladas e explícitas de Marcelo ao PSD não ajudaram. A entrevista que o Presidente deu à SIC quando fez um ano da sua eleição foi um massacre do líder do PSD. Balanço: não esbateu conflitos nem aproximou. Teve um almoço a sós com Passos Coelho em Belém, mas o que os dois homens disseram permanece no segredo dos deuses. Pelo menos aproximação ao primeiro-ministro não houve. Apesar de Marcelo querer “descrispar”, o debate político está a atingir limites raramente vistos.

Marcelo descodificado em cinco pontos. Território marcado, críticas a Passos e linhas vermelhas

“O pedido de controlo pelo Tribunal Constitucional deve derivar sempre de duvidas de constitucionalidade, e o veto político não deve ser fundado em questões de constitucionalidade mas em razões políticas. Estas razões podem envolver a pré-compreensão que o Presidente da República tem da realidade política, económica e social, mas deve dar um peso decisivo do que é a avaliação da sociedade naquele momento. O presidente não pode esquecer a pessoa que é, mas também não pode reduzir o desempenho do cargo a uma mera dimensão institucional.”

É o primeiro constitucionalista na Presidência da República e ainda não mandou qualquer diploma para o Tribunal Constitucional. Apenas ameaçou enviar o diploma das 35 horas para a função pública, no caso de significar um aumento da despesa do Estado. Os três vetos que exerceu foram políticos: às barrigas de aluguer, à impossibilidade dos STCP — os transportes do Porto — terem capital privado e ao fim do sigilo bancário. Todos os vetos políticos tiveram como pressupostos o que Marcelo disse na Voz do Operário: o pensamento do Presidente e a avaliação que fez da sociedade naquele momento.

A relação com os portugueses: selfies e afetos

“A solidão é um dos dos problemas da sociedade. Há entre nós cada vez mais carência de proximidade. Há cada vez mais expectativas de um Presidente que possa ouvir de perto, servir de porta voz dos mais carenciados aos mais marginalizados, dos mais dependentes e excluídos, crianças, idosos, fracos, portadores de deficiências, os mais sujeitos a abusos e assédios físicos e psicológicos.”

Marcelo Rebelo de Sousa tem cumprido. Esta faceta está relacionada com o facto de ser um católico empenhado na área social, uma faceta que desenvolveu depois do Concílio Vaticano II, por ele vivido intensamente: desde essa época que sente o dever, como católico, de intervir no mundo. Não é por acaso que esta quinta-feira vai distribuir a revista Cais, vendida por sem-abrigo, no dia em que comemora um ano de mandato. Visita lares, associações de apoio à criança e a doentes, instituições de solidariedade de todo o tipo, já almoçou na casa de um antigo sem-abrigo e fá-lo sem a distância formal de Cavaco ou os tiques elitistas de Sampaio ou Soares.

“Pela minha maneira de ser, que não enjeito, sou naturalmente próximo das pessoas. E não vou mudar um centímetro a minha maneira de ser. (…) Próximo, direto, aberto e frontal. Preocupado com com problemas, mas não problemas abstratos, mas com pessoas concretas de carne e osso. O voluntário lida com pessoas de carne e osso.”

Em resumo, eis a distribuição dos afetos. No fim do mandato, quantos portugueses têm uma selfie com o Presidente, quantos trocaram palavras com ele, quantos foram tocados pela pop star da política portuguesa? Pode por vezes parecer um folclore. Às vezes, é um folclore. Mas Marcelo Rebelo de Sousa está a fazer algo que faltava na política em Portugal: aproximar a instituição Presidência e a política das pessoas. Nem Soares era assim, porque nunca deixava de ter a sua pose burguesa. Depois dos anos terríveis da troika e da gestão de José Sócrates que levou o país ao chão, é importante haver um político que toque nos portugueses. Visto do lado cínico dos jornalistas e dos outros políticos, pode parecer mais um artifício, mas muita gente que Marcelo ouviu deve ter sentido algum consolo.