O circuito é… circular. Começa num ponto, acaba no mesmo. Mas não sem antes passar por vários mundos e dimensões. Uma volta de 360 graus. Já era esse o conceito do Lisboa Dance Festival, repete-se nesta segunda edição, que começou esta sexta e termina este sábado no Lx Factory.

O próprio recinto ajuda. Começa na pequena sala pintada a surf e skate do hostel The Dorm, onde há autênticas batalhas na cabine de som, continua na silenciosa livraria Ler Devagar; passa pelo espaço Zoot onde Moullinex (ou Branko, no segundo dia) tem a casa aberta toda a noite, depois o mercado, depois a fábrica XL, onde a pista é de facto extra large até para os grandes nomes da música eletrónica internacional; “hello world” e aí estamos de volta ao The Dorm. A volta é rápida mas há espaço para tudo, só não sabemos se há tempo para tudo.

Porque há também muita pressa. E o tempo é o que menos joga a favor nesta equação. Não o tempo do relógio, que das 19h às 4h cabe muita coisa. Mas, das duas uma: ou a imersão é tal que esquecemos o mundo à nossa volta, e, nesse caso, tempo, música e dança alinham-se como os astros nos seus melhores dias; ou o tic-tac do mundo lá fora começa a chamar por nós, e, aí, salve-se quem puder. A pressa é muita. Se não satisfaz, ninguém tem problemas em fazer swipe, recusando um e passando ao próximo (olá Tinder?). Olha-se para um lado, olha-se para o outro e, enquanto o peso do corpo balança entre pés e a cabeça abana mecanicamente, circula-se. Mais uma voltinha, porque o difícil é estar parado.

A verdade é que se a organização queria um festival de música eletrónica onde a música vale pela música, e a dança e a imersão são o único agradecimento possível, isso ainda é o mais difícil de conseguir. Há fotografias para tirar, vídeos para partilhar, uma vida inteira para mostrar: “olhem, eu vim”. Os telemóveis ao alto já fazem parte do cenário de qualquer espetáculo onde os sentidos se requerem apurados. E se não estiverem ao alto, estão na mão, sendo que os olhos, nesse caso, ficam apontados para o chão. Na fábrica L, paredes meias com o palco dos grandes cabeças de cartaz, ainda há um lounge com “free wifi”, mas esqueçam. Hoje ninguém precisa de free wifi.

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Problema: cada segundo a olhar para o iPhone é um sorriso de Tokimonsta que se perde, temos pena. Depois de a canadiana Jessy Lanza ter começado a ver chegar gente ao grande armazém da fábrica XL (grande de mais àquela hora), a DJ norte-americana de olhos rasgados pôs o seu melhor sorriso e foi mostrar ao recinto meio cheio que esta coisa de pôr som não é mesmo só carregar no play. É fazer tudo parecer fácil e sorrir, enquanto conversa meio telepaticamente com o público que dança à sua frente e lhe pede autorização para “abrandar um bocadinho” ou, sem avisar, acelera para momentos altos de hip hop.

Alerta: fake staff

O ambiente está bom, a boa disposição de Tokimonsta continua a contagiar. Mas isto aqui é um festival e ali ao lado está mesmo a começar mais um B2B, os chamados back to back, quando dois DJs partilham a cabina de som e desafiam-se mutuamente. Porque não? Às 23h30 era a vez de Sam the Kid desafiar o DJ Big, mas a pequeníssima sala do hostel foi de facto pequena demais para explicar o hip hop. Quem “percebia o hip hop”, na primeira fila e de braço ao alto, continuou a perceber, quem não “percebia” também não ficou para aprender. Era preciso dar a vez a outros, que faziam fila para entrar, já que só depois de uns saírem os seguranças autorizavam as entradas da outra leva. Sejamos, pois, amigos.

Na sala Zoot, no edifício principal da Lx Factory, sabíamos que o português Luís Clara Gomes — Moullinex — tinha sempre a “casa aberta” para nós, em oito horas de uma autêntica maratona musical com convidados especiais, ananases, claro, e um espetáculo de vídeo e luzes que merecia ser visto por mais do que uma lente de telemóvel. Mas era na livraria Ler Devagar que o mundo mais girava. Foi ali que Batida recuou 10 anos e Pedro Coquenão recriou o programa de rádio onde, em 2007, começou por apresentar as novas tendências da música lusoafrotrónica que depois viriam a dar vida a Batida.

Sem pessoas no “palco”, ali só havia “fake staff” a circular (assim mesmo, escrito na parte de trás do macacão preto). De resto, era um aglomerado de rádios que “dava” música. O mesmo aglomerado de rádios que, antes de arrancar nos ritmos eletrónicos africanos, avisava todos os presentes de que, se quisessem conversar uns com os outros, pois que recolhessem ao andar de baixo e fossem para junto dos livros e da bicicleta voadora onde, de facto, imperava o silêncio. Aquilo não era um clube, era uma pista de dança, por isso que deixassem desfrutar aqueles que queriam desfrutar — mas que coisa.

Ordens talvez um pouco duras para tanta liberdade. Mas o fake staff de Batida podia circular na livraria que aqui não havia maneira de haver fake news, nem muros, nem restrições. A liberdade circula ou, se quiser, fica parada oito horas no mesmo sítio a ouvir o espetáculo que Moullinex pensou para ela. O feminismo está na pista, a dançar, ou nos pratos a tocar. O girl power está numa das talks previstas para o início da tarde deste sábado, assim como a globalidade enquanto unidade ou o domínio das redes sociais — essas que estariam sempre lá, quer fossem chamadas ou não. Tudo vai ser falado e discutido à luz do dia na fábrica L, enquanto nos outros espaços ao cair da noite vão começando a soar as primeiras notas.

A isto se chama modernidade? Se não se chamar, chama-se, pelo menos, qualquer coisa como incontornabilidade. Por isso, adaptemo-nos. Certo é que a mesma modernidade que leva à necessidade de partilhar conteúdos nas redes sociais quando se está num recinto com milhares de pessoas é bem capaz de ser a mesma modernidade que permite erguer um festival, num dos espaços mais trendy de Lisboa, dedicado ao experimentalismo, com ritmos africanos eletrónicos instalados lado a lado com clássicos da literatura. Vale tudo. E ainda bem.