Ao menos, prenderam o Madoff. Nas conversas de café que resvalam para as demoras da Justiça ou, pior ainda, para a impunidade que muitos conferem às elites políticas e financeiras, não são raras as vezes em que alguém se lembra de dizer: “Mas ao menos na América eles prenderam o Madoff”.

Havendo perguntas sobre a sua identidade, a resposta possível é esta, de forma resumida: Bernie Madoff é o antigo presidente não-executivo do NASDAQ, que em meados da década de 1980 começou um fundo de investimento que, na verdade, era um esquema em pirâmide. Os clientes, que iam desde fundos de pensões privados até Steven Spielberg, confiavam milhões e milhões de dólares a Madoff, que lhes prometia um retorno anual de cerca de 12%. Porém, o que este fazia era simples: em vez de investir o dinheiro dos clientes, guardava grande parte para si. Isto só foi possível porque os clientes continuavam a receber os seus dividendos — que, em vez de serem resultado dos investimentos, eram gerados como em qualquer esquema de pirâmide. Ou seja, uma percentagem do investimento inicial dos recém-chegados era canalizado para as contas dos investidores com mais antiguidade, gerando assim um frágil e perigoso ciclo vicioso.

O fundo de Madoff só veio a ruir em 2008, em plena crise financeira, representando ao longo dos anos uma fraude de quase 65 mil milhões de dólares. Em dezembro de 2008, Bernie Madoff foi preso. E em junho de 2009 foi condenado a 150 anos atrás das grades. É por lá que permanece, hoje, aos 78 anos — e também deverá ser lá que vai morrer.

“O Madoff andou mais de oito anos a ser investigado, é preciso que se tenha esta ideia”, disse Joana Marques Vidal depois de lhe terem perguntado sobre o adiamento do prazo para a publicação do despacho de acusação do caso da Operação Marquês (MIGUEL A. LOPES/LUSA)

Nessas conversas de café, Madoff serve, pois, como antídoto para um sentimento de revolta do cidadão comum. E foi um pouco nessa senda que esta segunda-feira, na conferência “Justiça Igual para Todos”, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, lembrou o caso do norte-americano. O tema era precisamente os prazos da Justiça. Joana Marques Vidal não se referia a nenhum caso particular, mas a verdade é que nesse mesmo dia o jornal i escrevia que o prazo para ser tornada pública a acusação contra José Sócrates (17 de março) não iria ser cumprido pelos procuradores — na quarta-feira pediram um adiamento à PGR, esta sexta-feira o pedido foi aceite.

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Prazo final para conclusão da Operação Marquês só deverá ser fixado em abril

“Por vezes falamos muito, por exemplo, no Madoff”, começou por dizer, do púlpito, Joana Marques Vidal. “O Madoff andou mais de oito anos a ser investigado, é preciso que se tenha esta ideia. Simplesmente, andou a ser investigado por autoridades fiscais, por autoridades tributárias, por autoridades também policiais.” Depois, explicou a procuradora-geral da República, “só quando foi remetido ao Ministério Público, já numa fase final” é que o caso se pôde “desencadear”.

Com esta afirmação, e tendo em conta que esta sexta-feira terminava o prazo para ser conhecida a acusação a José Sócrates e aos restantes arguidos na Operação Marquês, é quase impossível não ligar as palavras de Joana Marques Vidal àquele que é considerado um dos mais complexos casos judiciais portugueses, que ainda por cima tem um ex-primeiro ministro como principal arguido.

Porém, se há coisa que pode ser retirada do caso Madoff é que a investigação esteve longe de ser um sucesso. Na verdade, foi antes um fracasso rotundo, ao qual nenhuma autoridade da Justiça de qualquer país deverá querer associar-se.

16 anos com a maior fraude de sempre debaixo do nariz

Para perceber isso, basta ler o relatório do inspetor-geral do Securities and Exchange Commission (SEC), o organismo responsável pela monitorização do setor financeiro. O título do documento de 22 páginas explica logo que o que se segue não é de todo simpático para aquela instituição: “Investigação do Fracasso do SEC em Desvendar o Esquema de Ponzi de Bernie Madoff”.

Este é um “fracasso” que começa em junho de 1992 e que só em dezembro de 2008 é descoberto. Entre estas duas datas vão mais de 16 anos — e não os oito que Joana Marques Vidal referiu esta segunda-feira — em que os inspetores do SEC tiveram debaixo do seu nariz a maior fraude financeira dos EUA — que, de forma sistemática, desvalorizaram e ignoraram.

“Entre junho de 1992 e dezembro de 2008, quando Madoff confessou, o SEC recebeu seis denúncias substanciais que levantavam sinais de alarme em relação às operações de Madoff com hedge funds [fundos de investimento em ativos de risco elevado] e que devia ter levado a questões sobre se Madoff estava verdadeiramente a fazer investimentos”, lê-se na auditoria à ação do SEC. Ao todo, foram levantadas 29 red flags — ou seja, indícios que poderiam levar a uma acusação contra Madoff, caso as autoridades lhes tivessem dado seguimento.

Já depois de ser detido, Madoff viria a admitir que passou a operar o seu fundo de investimento como um esquema em pirâmide depois da segunda-feira negra de 1987. Numa entrevista à CNN Money, em 2013, disse: “Pensava que podia sair por mim próprio de uma situação temporária, mas ela começou a piorar cada vez mais e eu não tive coragem para admitir o que tinha feito. Isso criou um problema enorme”.

A verdade é que logo em 1992 esse “problema enorme” poderia ter sido travado. Em junho desse ano, uma empresa gestora de investimentos, a Avellino & Bienes, cujos ativos eram por sua vez totalmente controlados por Madoff, foi alvo de investigação por parte do SEC. A investigação levou a uma acusação contra a Avellino & Bienes, que funcionava como um esquema de pirâmide sob a capa de um fundo de investimento “especial” e “exclusivo”. A Avellino & Bienes acabou por ter de pagar uma multa de quase meio milhão de dólares. E quanto a Madoff, já que era ele que geria o fundo os ativos do Avellino & Bienes? O SEC não fez nada, como se pode perceber no próximo parágrafo, retirado do relatório sobre a sua ação:

“O resultado foi uma oportunidade falhada para desvendar o esquema de Ponzi [ou esquema em pirâmide] 16 anos antes da confissão de Madoff. O SEC tinha informação suficiente para interrogar e investigar Madoff por um esquema de Ponzi em 1992. Havia provas de retornos incrivelmente consistentes durante um grande período de tempo sem quaisquer perdas (…). Ainda assim, o SEC parecia satisfeito com o encerramento da Avellino & Bienes e nunca ponderou investigar Madoff, apesar de saber que a Avellino & Bienes investia todo o dinheiro dos seus clientes com Madoff.”

Queixas, queixas e mais queixas

Em 2000, surge Henry Markopolos. Nessa altura, o chefe deste analista financeiro pediu-lhe que tentasse descobrir qual era o modelo matemático por trás do sucesso de Madoff. Henry Markopolos aceitou o desafio — e, pelo que contou anos depois ao programa de televisão 60 Minutos, bastou-lhe muito pouco tempo para perceber que o que se passava era um crime. “Demorei cinco minutos a perceber que era uma fraude. [E] demorei mais quatro horas a fazer cálculos para provar que era uma fraude”, disse.

Quando se apercebeu do que tinha em mãos, Henry Markopolos apresentou uma queixa contra Madoff no SEC. No documento que entregou dizia que, no esquema em pirâmide do ex-chairman do NASDAQ, “os retornos eram verdadeiros, mas vinham de um processo diferente do que era publicitado” e que “todo o fundo não passa de um esquema de Ponzi”. Apesar de ter havido uma reunião com responsáveis do SEC, estes escolheram não dar seguimento a uma investigação.

Henry Markopolos descobriu a fraude de Bernie Madoff e apresentou provas às autoridades, mas estas não deram seguimento às denúncias (Mark Wilson/Getty Images)

Este viria a ser o primeiro fracasso de Henry Markopolos, que ganhou o estatuto de Velho do Restelo quando na verdade era antes Cassandra — a figura mitológica grega que alertava para desastres vindouros e cujos avisos eram ignorados. Ao longo dos anos, Henry Markopolos viria a apresentar novas queixas, com mais provas. Ao todo, abordou o SEC um total de quatro vezes, entre 2000 e 2007.

Ao longo destes anos, durante os quais também foram publicadas em revistas da especialidade artigos que apontavam para irregularidades no fundo de Madoff, o SEC até chegou a interrogá-lo. Porém, segundo o relatório do inspetor-geral do SEC, essas entrevistas não foram, no mínimo, conduzidas da melhor maneira. Num dos casos, juntou-se uma “equipa de interrogação sem experiência”. Depois, apesar de ser referido que os inspetores “quase imediatamente apanhavam Madoff em mentira”, no final de contas “não conseguiam desenvolver essas inconsistências”.

Logo na primeira vez que foi interrogado, José Sócrates respondeu perante um juiz de Instrução Criminal que determinou naquele dia a medida de coação mais gravosa para um arguido: a prisão preventiva. Tudo isto aconteceu depois de José Sócrates chegar a Lisboa a bordo de um voo de Paris. Assim que aterrou, foi detido, levado para interrogatório e a seguir para a prisão de Évora, onde esteve cerca de 10 meses. Já Madoff, passou os 16 anos em que foi submetido a interrogatórios em plena liberdade e sem que lhe fosse colocado qualquer processo legal.

Durante os interrogatórios, Madoff dava “respostas evasivas e contraditórias a perguntas importantes”. Apesar disso, os examinadores “aceitavam as suas respostas como plausíveis”. Noutra fase das investigações em torno de Madoff — que nunca passaram de uma fase preliminar —, os interrogadores descreveram-no como “um contador de histórias maravilhoso” ou como um “orador muito cativante”. Terão ficado satisfeitos com a seguinte explicação de Madoff para o sucesso do seu fundo: “Há pessoas que sentem o mercado. Há pessoas que simplesmente sabem como analisar os números que têm à frente”.

Madoff: “Eu pensava que era o fim (…). Mas isso nunca aconteceu”

Mais tarde, Madoff recordou a estranheza com que acompanhou esses interrogatórios. “Eu pensava que era o fim, acabou. Na segunda-feira de manhã (…) isto vai acabar tudo. Mas isso nunca aconteceu”, disse, admitindo estar “espantado”.

O esquema em pirâmide de Madoff só viria a ser descoberto em dezembro de 2008, já com a crise financeira de 2008 instalada, quando muitos dos clientes de Madoff quiseram retirar o seu dinheiro do fundo — o que, segundo as regras de Madoff, não lhes custaria nenhuma penalização, o que é altamente invulgar neste universo. Ao todo, tentaram tirar 7 mil milhões de dólares. Já só lá estariam entre 200 a 300 milhões de dólares. Madoff seria detido pouco depois pelo FBI

Nessa altura, as denúncias de Henry Markopolos e de outros, que o fizeram também de forma anónima, já de nada serviam. A culpa pertencia ao SEC e à reduzida importância que deu a todas as pistas que teve pela frente.

Robert de Niro interpreta Bernie Madoff no filme “The Wizard Of Lies”, com estreia marcada para maio deste ano (IMDB)

“Apesar de várias queixas credíveis e detalhadas, o SEC nunca examinou ou investigou devidamente os investimentos de Madoff e nunca tomou as medidas necessárias, e básicas, para determinar se Madoff estava por trás de um esquema de Ponzi. Se esses esforços tivessem sido acompanhados de um follow-up adequado em qualquer altura entre junho de 1992 e dezembro de 2008, o SEC podia ter descoberto o esquema de Ponzi muito antes de Madoff ter confessado”, lê-se no último parágrafo do relatório do inspetor-geral do SEC.

À detenção de Madoff em dezembro de 2008, seguiu-se um julgamento que, passados tantos anos, ainda hoje é descrito como sendo notoriamente rápido. Afinal, em março de 2009 Madoff era condenado por 11 crimes. E em junho do mesmo ano a sentença foi lida: 150 anos de prisão. Porém, esta rapidez só foi possível devido a um detalhe crucial: Madoff confessou.

José Sócrates, tal como todos os arguidos da Operação Marquês, são inocentes até que se prove o contrário. E não se prevê que se confessem culpados do que quer que seja. José Sócrates mantém que é inocente desde que foi detido à saída daquele voo de Paris para Lisboa, em novembro de 2014. Um julgamento em alguns meses também é praticamente impossível, dada a quantidade de arguidos — 28 — e do previsível número alargado de testemunhas que serão chamadas a depor.

Embora as vítimas de Madoff tenham conseguido reaver pouco mais de 9 mil milhões dólares, esta compensação está longe de chegar aos 65 mil milhões que o fundo deitou a perder à medida que o esquema em pirâmide desabava.

No caso de Madoff não há, pois, vencedores. E isso aconteceu muito por causa da resposta insuficiente e tardia das autoridades norte-americanas, em particular do SEC, que não soube identificar a maior fraude financeira de sempre quando a teve debaixo do nariz ao longo de 16 anos. Por isso, quando se diz no café — ou na Fundação Calouste Gulbenkian — algo como “ao menos na América eles prenderam o Madoff”, não se está a dizer nenhuma mentira. Mas a história é bem mais complicada.