Está nos livros que os comboios que chegam a horas não são notícia, a não ser que passem a ser pontuais quando andavam atrasados. Este primeiro debate quinzenal de primavera foi assim: não houve insultos como no anterior, nenhum líder acusou o primeiro-ministro de mentir ou vice-versa, nem António Costa provocou os adversários como de costume. Passos Coelho não falou, o que pode ter contribuído para a “descrispação”, mas até isso poderá vir a ser usado contra ele, se o próximo debate em que participar voltar a ser violento (e Costa sabe provocar Passos como ninguém, para depois o acusar de irritação).

O tema que podia levar Costa a ser mais cáustico e que o primeiro-ministro mais podia cavalgar, foi levantado pela deputada Gabriela Canavilhas — a entrevista de Assunção Cristas ao Público a dizer que nunca se falou de banca nos conselhos de ministros. Passou, porém, sem acusações nem recriminações: “Não faço nenhum comentário. Palavras para quê?”, disse Costa. Sem espetáculo, pode ter sido uma maçada para as televisões, mas estivemos perante um momento normal de uma democracia regular, o que não quer dizer que tenha sido uma tarde desinteressante.

A registar, as concordâncias contra o presidente do Eurogrupo: atenção sr. Presidente da República, aqui tem um raro consenso de regime, todos contra Jeroen Dijsselbloem na defesa da honra nacional. Costa já tinha dito que as declarações do ministro das Finanças holandês eram uma atitude “sexista, racista e xenófoba”. O PSD pediu a demissão do presidente do Eurogrupo: “Só tem um caminho e um caminho é ir embora”, disse o líder parlamentar Luís Montenegro. Como os sociais-democratas não podiam ser acusados de defender a linguagem do holandês, o líder da bancada fez a declaração sem mencionar sequer aquilo que estava na base da imagem usada: que os países que gastam demais depois endividam-se e são os mais ricos a ter de pagar. O argumento de fundo é partilhado pelo PSD, mas era impossível ao partido de Passos Coelho não se demarcar da fórmula do holandês.

Nos casos do Bloco, do PCP e até do Governo, as críticas a Dijsselbloem serviram para os partidos reforçarem as suas teses sobre a União Europeia. “Há uma plataforma de ódio na Europa quando se atacam os países do sul e isso tem eco no nosso país”, disse Catarina Martins. É a voz do “diretório liderado pela Alemanha”, acusou Jerónimo de Sousa. Para António Costa, é o sinal de que “as feridas da crise de 2011 não estão ultrapassadas” e que é cada vez maior “a clivagem entre culturas que se tem vindo a acentuar entre este e oeste e norte e sul” na União Europeia. Quando primeiro-ministro diz que “com Dijsselbloems o euro está condenado”, faz uma declaração programática sobre o futuro da Europa. É sinónimo de pedir menos disciplina orçamental, menos austeridade e uma profissão de fé no próximo presidente do Eurogrupo, uma vez que o holandês (que também faz parte do grupo dos socialistas) vai sair porque o seu partido teve uma estrondosa derrota nas eleições. Se o novo presidente for da mesma linha, isso será uma derrota para o governo português.

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Mas o tema substancial do dia era a reestruturação da Caixa Geral de Depósitos. O PSD ainda questionou o primeiro-ministro sobre a reforma curricular na educação, um tema para um ambiente sem crispação e depois avançou para uma posição que parece pouco natural para os sociais-democratas. Do ponto de vista tático, faz sentido enfatizar que o fecho de balcões acaba por ter a contemporização da esquerda, cujo discurso é muito menos violento do que se a decisão fosse tomada por um Governo de direita. Outra coisa é o PSD ser contra o fecho dos balcões, o que aparece como uma posição contra-intuitiva do partido liderado por Pedro Passos Coelho, para quem a Caixa devia ser gerida como um banco privado.

Como a política funciona com uma geometria variável consoante a posição em que o protagonista está em cada momento, António Costa respondeu o que provavelmente Passos responderia se estivesse no seu lugar: “A garantia é termos uma gestão profissional e independente. (…) É bom do ponto de vista das instituições europeias saber que a Caixa é gerida com profissionalismo e não por critérios políticos. O Governo não intervirá no dia-a-dia da Caixa, seja para decidir a política de crédito, de pessoal, ou se abre ou fecha balcões”.

Luís Montenegro voltaria à carga com argumentos para causar desconforto à esquerda. Com as obrigações perpétuas de investidores institucionais para reforçar o capital da CGD na linha de fogo, o líder parlamentar do PSD chamou-lhe “uma recapitalização das esquerdas”, argumentado que se a mesma operação fosse feita pelo PSD chamavam-lhe uma “privatização encapotada”. Nisso tinha razão. Mas depois caracterizava a operação de forma pouco rigorosa só para ter um soundbyte: “Agora o que está em curso é uma privatização ‘geringonçada’ da CGD”.

A pergunta que realmente tinha de ser feita — e que poderia muito bem ter sido lançada pela direita — foi colocada por Catarina Martins e não teve resposta. Sobre as obrigações perpétuas: “Terão juros de mercado, mas a Caixa está a emitir 930 milhões de euros com juros de 10%, porque é isso que o mercado está a determinar”. Segundo a líder do Bloco, a CGD “vai perder quase 100 milhões por ano” com esta operação. António Costa respondeu apenas que “não desejaria a um amigo negociar com a DGComp” em Bruxelas. Rematou para a bancada. Sobre o preço da operação, nada.

Estas horas de discussão amena foram um momento de escape à violência dos debates passados, que até motivaram um aviso do Presidente da República. Resta saber quanto dura a redução da adrenalina parlamentar, sendo certo que quem domina o tom é o primeiro-ministro. A saber: a crispação estará de volta na próxima intervenção de Passos Coelho?