Aquela ali na foto era o meu irmão. Pela foto não se percebe, mas aquela fita que tem na cabeça era um símbolo contra a ditadura”, atira Raí. O antigo craque brasileiro fala com uma visível paixão do irmão, Sócrates. E recorda com saudosismo os anos em que o ídolo da Fiel gizou a Democracia Corinthiana para libertar o Timão do regime em nada dado a outras opiniões. Sócrates lutou, em campo, pela liberdade; agora, de uma outra forma, Raí preserva, fora de campo, a liberdade. Até podem ter razões e fundamentos distintos, que têm, mas comungam do mesmo ideal: lutar pelos sonhos sem barreiras, sem opressões de classes. Todos somos o que somos pelo que fazemos. Mas porquê não dedicar uma vida para que todos tenham oportunidades iguais? Golos e títulos à parte, este é o maior legado da família Vieira de Oliveira.

A importância da Democracia Corinthiana

Sócrates partiu em 2011, com apenas 57 anos, mas é ainda hoje recordado como um dos maiores de sempre do futebol brasileiro e mundial. Após quatro anos de sénior no Botafogo de Ribeirão Preto, com mais golos do que jogos mesmo sem ter grande folga para treinar porque estava a concluir o curso de medicina, muda-se para o Corinthians onde rapidamente se torna ídolo da torcida. Mais ainda quando, em 1982, é o ideólogo da Democracia Corinthiana, movimento numa altura muito conturbada da vida do clube em que foi instituído uma espécie de autogestão no clube, com as decisões a passarem tanto por dirigentes e treinadores como pelos próprios jogadores.

Vivíamos num Brasil em ditadura militar, aí com o general Oliveira no comando do país. Se juntarmos ao conceito da Democracia Corinthiana outros pontos altos desta revolução no futebol como a publicidade nas camisolas com “Diretas Já” ou “Quero votar para presidentes”, é fácil perceber que quem mandava não achou muita graça a tamanha insubordinação. Mas a verdade é que não só corporizou o que movimentos de várias ordens começavam a reivindicar como endireitou o clube na parte desportiva e financeira, limpando por completo os balanços negativos do Timão.

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Sócrates, o mais velho, revolucionou o futebol brasileiro e teve um papel de relevo na sociedade; Raí, o mais novo, tem tentado revolucionar a sociedade partindo do papel de relevo que o futebol, e o desporto em geral, pode ter. E foi isso que apresentou no Football Talks, no Estoril: a Fundação Gol de Letra, que atingiu no ano passado a sua maioridade após 18 anos a quebrar barreiras e abrir horizontes entre os que mais precisam na sociedade; e a Atletas pelo Brasil (antes Atletas pela Cidadania), que quer juntar atletas de variadas gerações para melhorar o desporto no país e contribuir para o desenvolvimento do país tendo como exemplo aqueles que são, e serão, ídolos dos mais novos.

Como Raí se livrou de ser um filósofo grego

Notava-se algum nervosismo na antiga estrela do São Paulo e do PSG no palco. Um nervosismo quase dócil, se pensarmos que, nos anos 80 e 90, chegou a ser apelidado de Terror do Morumbi. Raí faz o que faz hoje na vida por convicção. Quer “apenas” ajudar o próximo. Ou os próximos. E os próximos a seguir a esses. Com isso, e numa expressão muito brasileira, “ficou sem jeito”. Até arrebatar outra vez a plateia, agora não com golos ou passes decisivos mas com o poder do humor e das palavras.

“Toda a causa tem uma origem. Sócrates teve uma grande atuação, a Democracia Corinthiana numa fase de ditadura foi um marco, uma grande inspiração. Mas os meus pais foram um grande exemplo. O meu pai, o senhor Raimundo, nasceu numa região pobre da periferia, teve de deixar a escola aos 13 anos e teve seis filhos. Mas sempre gostou de ler. Seguiu uma carreira de funcionário público mas foi ele que sempre incentivou o meu irmão a acabar a faculdade e a ser médico. Na altura em que ele nasceu, o meu pai estava apaixonado pelos filósofos gregos e chamou o primeiro filho de Sócrates. Depois foi o Sóstenes e o Sófocles. A certa altura a minha mãe já não estava a gostar e o quarto filho ficou Raimundo. A seguir Raimar e eu fiquei Raí. A única frustração dele era não ter um diploma universitário e voltou então a estudar, fez Direito e Economia”, confessou para quebrar o gelo e mostrar ao que vinha.

Em 1998, quando tinha 33 anos e curiosamente estava perto de ser avô, criou a Fundação Gol de Letra, “que consegue hoje ter impacto na vida de 3.000 crianças em São Paulo e no Rio de Janeiro com uma metodologia muito própria que está a ser passada pelo país”. “A Fundação virou uma referência”, destaca com orgulho (e bem mais à vontade no palco). Criada, curiosamente, no Dia dos Direitos Humanos.

Na altura com o antigo companheiro de seleção e clube Leonardo, a Gol de Letra foi criada com o objetivo de poder chegar a crianças e jovens de comunidades mais vulneráveis na sociedade e abrir melhores perspetivas de vida. Meta cumprida. Não só a nível de zonas englobadas, com a disseminação dos programas por várias cidades brasileiras, quer no número de núcleos familiares que vai conseguindo albergar. “O objetivo global é participar num movimento que traga um país socialmente mais justo”, resumiu.

A Atletas pelo Brasil e um eventual regresso ao futebol

Em paralelo, Raí criou também a Atletas pelo Brasil, associação sem fins lucrativos que engloba vários ícones brasileiros, do passado e do presente, do futebol, do basquetebol, do voleibol ou da natação, entre outras. Neste caso, a luta passa por melhorar o desporto no país, e por inerência, a própria sociedade. Para isso, foi feito também o Pacto pelo Desporto, acordo com várias empresas que patrocinam o desporto e que pretendem ajudar na construção de uma gestão mais moderna e eficiente. “O jogo só termina quando todo o mundo vence”, é o lema.

“Conseguimos mudar a Lei Pelé junto do Congresso e temos esse acordo com as entidades para um desporto com regras de transparência e boa conduta. Enquanto atletas ou antigo atletas, o nosso papel é informar, consciencializar e mobilizar para o desporto, algo que também irá contribuir para um país mais justo”, argumentou.

No final, uma provocação: para quando o regresso ao futebol? Raí, tal como Sócrates, é de “outro mundo”. Além da paixão por Paris, onde jogou cinco épocas, viveu um ano em Londres, por exemplo, onde estudou inglês, economia e gestão desportiva. E há São Paulo, a terra natal. Esperávamos uma resposta que terminasse no final da primeira parte. “Sinto saudades, acompanho como torcedor e sou embaixador do São Paulo e do PSG”. Mas havia mais uma parte. “Estou a tirar outro curso de gestão de desporto, quem sabe se um dia não volto?”. Fica a dúvida. Com a certeza de que, qualquer que seja a resposta, vai continuar a “fazer bem”.

A vida de Sócrates deu um filme. A de Raí devia dar.