Ao sexto dia, em Chã de Tanque, interior de Santiago, a azáfama das filmagens já entrou no quotidiano pacato de uma população que encontrou o seu “papel” como figurante na coprodução luso-cabo-verdiana de “Os dois irmãos”. O filme, baseado no romance com o mesmo nome do escritor cabo-verdiano Germano Almeida, conta a história de um fratricídio ocorrido no interior da ilha de Santiago nos primeiros anos da independência de Cabo Verde.

Em Chã de Tanque, na antiga escola, entretanto convertida em Museu da Tabanca, e agora transformada em “tribunal”, a equipa de mais de 80 pessoas, entre atores, técnicos e figurantes, filma uma cena do julgamento do irmão homicida, sob o “olhar atento” do retrato de Amílcar Cabral.

A cada “take” a já de si escassa circulação de carros é interrompida com a ajuda da Polícia Nacional e um silêncio quase absoluto, apenas entrecortado pelo cacarejar das galinhas, reina nas imediações do cenário. Refugiados do sol, que com a tarde a meio começa a incomodar, os cerca de 30 figurantes aguardam pela sua vez de entrar em cena. São gente de Chã de Tanque ou da pequena aldeia de Des-Des, meia dúzia de casas, mesmo em frente à antiga escola.

“É o décor perfeito”, disse à Lusa Francisco Manso, o diretor, que pela segunda vez leva ao ecrã um filme baseado em obras de Germano de Almeida, depois do Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo. As filmagens começaram numa localidade mais a norte, em Ribeira da Barca, e centram-se na sua globalidade nesta zona do município de Santa Catarina, interior da ilha de Santiago.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Os locais onde filmamos são absolutamente espetaculares. Os vales aqui à volta, o caminho para Porto Rincão, a Ribeira da Barca onde começamos a filmar, esta zona aqui em Chã de Tanque, esta aldeiazinha aqui à frente. É tudo muito rural, tem características muito próprias”, considera o realizador.

Satisfeito com a forma como decorrem as gravações, Francisco Manso mostra-se surpreendido com a prestação dos atores, todos cabo-verdianos, a maioria amadores.

“Os atores são surpreendentes. Alguns nem sequer são profissionais, mas são muito talentosos, levam tudo muito a sério, têm os textos muitíssimo bem decorados, as suas falas? e tem sido surpreendente”, disse.

Mas, o que Francisco Manso mais valoriza é o facto de estar a conseguir “reproduzir com fidelidade” os locais e pessoas retratados no livro.

“As pessoas são muito simpáticas e ficam muito surpreendidas com esta movimentação toda. Os figurantes são pessoas de cá o que é uma coisa extraordinária. É tudo autêntico, as pessoas, as roupas?. Acho que estamos a reproduzir com fidelidade o que são estes espaços e isso credibiliza o filme”, considerou.

Gracelina Medina, moradora em Chã de Tanque há 45 anos, é uma das figurantes. No filme, é uma das testemunhas do julgamento do irmão homicida, e em declarações à Lusa mostrou-se entusiasmada por poder participar naquele é um evento para a terra.

“A gravação do filme na nossa localidade é uma grande coisa”, disse, animada com a movimentação que a rodagem do filme veio trazer a uma localidade onde quase nada acontece. Satisfeita também por participar como figurante, nem os largos tempos de espera a fazer desanimar. “Há muitas vantagens e ficamos satisfeitos com esta movimentação”, disse. Na sala dos figurinos, Flávio Hamilton, 40 anos, ator cabo-verdiano residente no Porto e protagonista da história, vai matando o tempo, também ele à espera da sua vez.

Confessa-se “tocado” por poder participar num filme com esta dimensão e garante que apesar de viver em Portugal há mais de 10 anos não perdeu “nada da sua ligação” a São Vicente e a Cabo Verde.

“Estar a viver fora e de repente ter uma responsabilidade porque algumas pessoas me veem como um exemplo a seguir é uma coisa absolutamente deliciosa. Para Cabo Verde venho primeiro e pergunto depois”, disse. O ator entende a participação no filme como uma forma de retribuição ao país onde nasceu.

“Sinto até hoje que nunca devolvi a Cabo Verde aquilo que me deu. Cabo Verde nunca me saiu da cabeça e tenho a certeza que um dia venho viver para cá”, garantiu o ator. O filme, que é uma parceria entre o ministério da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde e a produtora portuguesa TAKE 2000-Produções, terá um custo de um milhão e 200 mil euros. As filmagens decorrem até final de abril em várias outras localidades do concelho de Santa Catarina de Santiago.