Voaram políticas idílicas da esquerda — que tal proibir as empresas de despedirem trabalhadores? — e medidas protecionistas da direita: Marine Le Pen quer distribuir dinheiro dos bancos aos trabalhadores e prometeu uma taxa sobre as empresas que contratem cidadãos estrangeiros. François Fillon acha que se deve parar de se contratar no Estado. A Europa foi como aquela amiga chata que tem sempre uma história sua para contar à mesa e meteu-se em todas as conversas e Emmanuel Macron, que vai em primeiro nas sondagens, foi pedir ajuda a Mitterrand no duelo de esgrima com Le Pen: “Nacionalismo é guerra!”, citou o centrista. Foi o primeiro debate com os 11 candidatos franceses a Presidente a República. Durou quase quatro horas nesta terça-feira à noite.

Faltam aproximadamente duas semanas para as eleições mais aguardadas na Europa do pós-Brexit. A vitória do primeiro-ministro holandês Mark Rutte, contra Geert Wilders, da direita anti-imigração, travou um pouco o medo daqueles que consideram que a Europa se está a auto-destruir, numa ebulição de medos e intolerâncias, mas agora é a vez de a França escolher entre um candidato de continuidade ou de rutura. O debate desta terça-feira juntou, pela primeira vez, 11 candidatos. Não houve lugar para ciúmes, todos falaram o mesmo — 15 minutos — mas começou com uma birra.

Phillipe Poutou, ex-líder sindical na fábrica da Ford e agora do partido dos Novos Anticapitalistas, é uma das apostas da esquerda mais vermelha e recusou-se a posar para a fotografia de família no início do debate. Emmanuel Macron, o candidato favorito nas sondagens, foi chamá-lo e de lá veio um muito francês “Non!”.

Holofotes postos também em Marine Le Pen, filha de Jean-Marie Le Pen, um nome que contamina a marca da Frente Nacional. Marine diz que vai lutar por França. Ponto. A simplicidade da mensagem é a chave do seu sucesso. Logo no início, assume que é a candidata para colocar “a França em ordem” e afirma querer “colocar o dinheiro dos bancos nas mãos das pessoas”. Dentro da estratégia de Marine, os lemas da esquerda e da direita coabitam sem atritos.

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À sua frente nas sondagens para corrida ao Eliseu está Emmanuel Macron, ex-ministro da Economia de François Hollande, atual presidente francês. Liberal nas duas frentes: na economia e na questões sociais é o candidato que aparece em primeiro lugar nas intenções de voto na maioria das sondagens.

Mas o “empate técnico” não quer dizer que tenham ambos as mesmas hipóteses. Na primeira volta, tanto Macron como Le Pen se situam perto dos 25% mas uma sondagem recente para o Le Monde, mostra Le Pen a perder por muito, na segunda volta, dia 7 de Maio, para o candidato que concorre como independente — de 61 para 39%.

François Fillon, o candidato do partido Os Republicanos, que começou esta corrida como um forte candidato, viu o apoio à sua candidatura cair 17%, muito por culpa do escândalo em que está envolvido.

Fillon reconhece “erros”, mas mantém-se na corrida

É seguido pelo candidato da extrema-esquerda Jean-Luc Mélenchon, que está no nível dos 15%, e de Benoît Hamon, candidato dos socialistas que agora está perto dos 10% depois de um momento de entusiasmo no início da campanha que entretanto esmoreceu.

O honesto, o operário e o filho do pastor (que também era pastor)

Que é como quem diz “eu comecei mesmo debaixo”. O início do debate ficou marcado por uma espécie de competição entre os candidatos para tentar aferir quem é que era mais “do povo”. Benoît Hamon, o socialista que quer impor um salário universal — sem ser preciso trabalhar para isso –, começou por dizer que é “o candidato honesto” nestas eleições. Poutou, que não posou para a fotografia e quer a idade da reforma nos 60, disse ser “o único candidato com origens na classe trabalhadora”.

Já François Asselineau, que considera Marine Le Pen uma candidata “branda” no que toca às questões de soberania, disse que vinha “de uma família modesta” mas foi Jean Lassalle, que ficou 39 dias sem comer na tentativa de salvar 140 empregos num fábrica, foi ainda mais longe: “Sou filho de um pastor, irmão de um pastor e fui eu mesmo pastor”.

Mais emprego? Menos Europa

A agulha esteve quase sempre apontada às preocupações sociais. Nathalie Arthaud, que é assumidamente comunista, quer proibir os despedimentos. “Sou pelas pessoas comuns, contra a minoria de proprietários e capitalistas”, disse a professora e líder do Lutte Ouvriere (Luta Operária). Não está sozinha. Poutou, o seu aliado na esquerda trotskista mas oponente nas urnas, disse que eram necessárias medidas “autoritárias” para parar a sangria de empregos em França e por isso propõe que se proíbam todos os despedimentos.

François Fillon defende que vai oferecer “liberdade” ao mercado de trabalho, o que, explica, “significa aligeirar os regulamentos que gerem o despedimento e a contratação”. O desemprego em França está nos 10%. Por comparação, a Alemanha não chega aos 4%. Fillon quer também levantar 40 mil milhões de euros de impostos às empresas e rever a burocracia que “atrofia” a produção agrícola. Jean-Luc Mélenchon, o esquerdista que pode ter o melhor resultado, lançou-se a Fillon: “As suas propostas são absurdas”.

Emmanuel Macron alinha pelo seu caminho preferido, a faixa do meio, para dizer que “é essencial investir no treino continuado daqueles que procuram emprego” mas os moderadores não deixaram passar em branco. Porque quem já esteve no Governo tem sempre que se justificar por aquilo que não fez. “Se já foi ministro da Economia porque é que não baixou o desemprego então?”.

E entra Marine Le Pen: a líder da Frente Nacional quer criar um imposto sobre as empresas que contratem estrangeiros. Além de encorajar a contração de franceses, “enche os cofres”, disse a candidata que considera que o seu país precisa de “patriotismo económico”, o que não passa só por dar prioridade aos desempregados franceses mas também se deveria traduzir numa vantagem das empresas nas adjudicações públicas. “Isto é protecionismo inteligente”, diz Le Pen.

A líder da extrema-direita anti-imigração também propôs um imposto aos produtos importados, política rejeitada por Macron. “O senhor Macron devia ir falar com os agricultores de tempos a tempos. Os nossos produtores de fruta e vegetais dizem que não podem competir com países onde os salários são um quarto ou um quinto dos nossos”, disse Marine Le Pen.

Frexit?

A Europa, sempre a Europa. Esta primeira secção era sobre emprego mas resvalou. Nicolas Dupont-Aignan, líder do Debout La France, amigo do ex-líder do britânico eurocético Nigel Farage, com muitas dúvidas sobre a permanência da França na União Europeia, disse que era necessário “rever todos os tratados com a Europa” e teve do seu lado um candidato de peso: Mélechon, que citou Marx antes de qualquer um dos outros esquerdistas. As “estruturas judiciais” é que estragam tudo. “Natalhie Arthaud subestima o papel destas estruturas na opressão dos trabalhadores”. Estas estruturas de que fala são as teias de Bruxelas. Não disse se lutaria ou não pela saída do país da União Europeia mas afirmou que se o processo de renegociar condições não fosse bem sucedido a França, sob a sua batuta, “sairia”.

Em muitos aspetos, este debate foi o que França é: uma grande tradição socialista, sindicalista de um lado e uma classe educada em grandes universidades, sem medo da globalização do outro. Como dizem os cartazes de Le Pen: “Já não existe esquerda e direita mas sim patriotas ou globalistas”.

Europa, imigração, emprego, temas que apaixonam e dividem. Emmanuel Macron sabe quem tem de atacar nesta última ronda e não se encolhe. Pega nas armas pesadas, que é como quem diz, pega em François Mitterrand e faz pontaria direta: “Nacionalismo é guerra”. Le Pen revira os olhos.

A l´ider da Frente nacional decidiu confrontar François Asselineau diretamente com a possibilidade do já chamado “Frexit”. O único candidato que considera Le Pen uma “moderada” disse que gostava de “acionar o artigo 50 assim que possível”, mas Le Pen afirmou que o seu método passa por “negociar” antes de propor um referendo.

Quem vai proteger os franceses?

Dos ataques terroristas, toda a gente parece ter medo, pois têm mantido o país em estado de emergência deste os atentados em Paris, em Novembro de 2015. Macron assume que, para proteger a França, “será preciso algum nível de intervenção militar” e diz ser impossível negar “a ameaça islâmica”. Para o centrista, a intervenção na Síria é “vital” mas as forças policiais no solo francês têm de se reorganizar.

Os ataques mais recentes, em Londres e São Petersburgo, pairaram como fantasmas durante esta parte do debate, como um lembrança mórbida não só dos horrores que a França já sofreu como daqueles que ainda pode sofrer. Le Pen tem aqui o seu ponto mais forte. “O terrorismo não pode ser prevenido sem que as nossas fronteiras se fortaleçam”, diz, para no mesmo fôlego, aparentemente sem reparar na contradição, dizer que a França se tornou “uma universidade de jihadistas”.

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Benoît Hamon, que sugeriu um modesto aumento no orçamento das forças de segurança e do exército, acusa aqui a líder da Frente Nacional de utilizar as palavras como instrumentos que servem a sua causa. Fillon diz que França tem que combater “na longa luta contra o totalitarismo” e formar alianças globais “o mais abrangentes possíveis”. Mas não coloca de parte a deportação de elementos que “sejam considerados um risco”.

Já Poutou quer o contrário: acabar imediatamente com o estado de emergência e desarmar a polícia. “A polícia anda a matar jovens, em vez de lutar contra o terrorismo”. Para pôr termo ao terrorismo, “é preciso parar de atacar o Médio Oriente” e “parar de vender armas aos sauditas”, diz Poutou.

E o modelo social vencedor é…

Durante o debate, a representação francesa da Comissão Europeia foi oferecendo serviços de “fact-checking” em tempo real. Sobre a questão dos trabalhadores estrangeiros em França isentos de taxas sociais, lembram que são apenas 1% da população.

A terceira parte do debate foi dedicada ao modelo social que os candidatos idealizam para a França no futuro, mas também aqui todo o discurso esteve impregnado pelo tema da Europa. Marine Le Pen diz que os serviços públicos “são muito criticados” e que “os serviços públicos não devem ser negócios”. Emmanuel Macron afirmou que é “tempo de parar de mentir aos franceses” — o sistema como ele existe atualmente não é sustentável e por isso sugere que, para as gerações futuras poderem usufruir desses serviços, “as autoridades locais deviam parar de substituir os trabalhadores públicos” de forma a poupar “60 mil milhões de euros”. Fillon concorda: “Devemos tentar eliminar 8% das posições no serviço público, cerca de 1,5% ao ano”, propôs o centrista.

Do outro lado da barricada: Poutou, Lassalle e Mélechon. O primeiro declara um “estado de emergência social devido ao nível de desemprego, pensões baixas e dificuldades de acesso à habitação” e acusa Fillon de canalizar fundos públicos para a sua família em vez se estar preocupado com a dívida. Os três pedem mais impostos sobre as grandes fortunas e Mélechon, em contraciclo com os cortes propostos por Macron e Fillon, diz que “são precisos mais trabalhadores públicos nos setores na educação e da saúde”.

Hamon atacaria Fillon na sua proposta de cortar o número de funcionários públicos. “Durante a crise foram eles que sustentaram este país”, disse Hamon, que apesar de se revelar fiel às suas ideias apareceu neste debate um pouco mais apagado do que é normal vê-lo nos seus encontros com apoiantes.

Notas póstumas

É quase altura de usar o “literalmente”. Depois de quatro horas de debate, a fadiga era evidente nos candidatos. No último minuto de que dispôs, Marine Le Pen pediu que se unissem a ela “todos os franceses que se sentem parte de um povo e uma cultura em perigo”. Fillon disse que a França está “numa posição difícil num mundo perigoso” e que para voltar a sentir “o sabor da felicidade” é preciso uma “mudança radical” e ele é “o único” que pode “unir esquerda e direita”. Macron pediu aos eleitores para “mudar a página”, não dos últimos cinco anos mas dos últimos 20. Mélenchon concluiu dentro do registo habitual, ao pedir uma França que não se deixe subjugar “ao reino dos ultra-ricos”.