Título: “O espírito da ficção científica”
Autor: Roberto Bolaño
Editora: Quetzal
Páginas: 191

O escritor maldito é a estrela da literatura moderna. O marginal que vagueia pelos escaninhos nocturnos de caderno em punho, troando contra a sociedade e a literatura burguesa, é lavado e aplaudido nos jornais e revistas pelas verdades que brada com violência. Ninguém o maldiz verdadeiramente: todos admiram o seu ar coçado, a lucidez amarga, o aspecto a raiar a loucura, o vanguardismo, a originalidade que não cede às exigências do público e o ar cansado de quem anda a pescar a literatura nos esgotos do submundo.

Pouco importa que o meio literário seja formado por iconoclastas que abominam o meio literário, que o vulgo ame qualquer bilhete de compras vendido como transgressor ou marginal, que o nosso tempo seja composto apenas por intelectuais que estão à frente dele e que a marginalidade encha as páginas centrais dos suplementos de cultura.

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Desde que Verlaine publicou o seu Les Poètes maudits (pouco nos interessa a pré-história da ideia), até que João Pedro George identificou O que é um escritor maldito?, muito mudou na sociedade. O escritor maldito, pela fama de incompreensão, tantas vezes motivada pelo seu comportamento provocatório, pela associação a uma qualquer pureza literária, superior à fama e ao dinheiro, pela moderna tara pelas heterodoxias, tornou-se o epicentro da vida literária. A forma ortodoxa de ser escritor passa por se afirmar heterodoxo, a transgressão é o novo convencional e o verdadeiro maldito, para o ser, tem de conseguir escapar à serpente hegeliana da diferença, em que a originalidade é só por si um valor convencional, que dessora qualquer idiossincrasia na vulgaridade comum.

Apesar disto, o escritor maldito não combateu o aburguesamento da sua imagem. Não se tornou um feroz ortodoxo, defensor da moralidade e dos bons-costumes, chocando pela sua monotonia gritante e escandalizando as suas amigas com cavalheirescas vénias de despedida. O “maldito”, ora impotente, ora apenas pele de lobo de um cordeiro oportunista, mantém-se fiel ao discurso para obter os resultados opostos. Grita nos jornais contra os jornais, discursa contra o governo e é condecorado pelo mesmo devido à coragem demonstrada, quando não chama canalhas e intrujões aos editores que alegremente lhe publica os livros. Pensemos nos nossos bastiões de malditismo: Luiz Pacheco a dedicar livros a Mário Soares (mesmo que os hagiógrafos se contorçam para mostrar uma forma peculiar de marginalidade), Lobo Antunes, “enfant-terrible” que é enfant já de bengala e terrible nos planos nacionais de leitura e afins, sempre de sobrolho carregado contra a grande editora que o publica… A “maldição” tornou-se uma caraça carnavalesca, que ninguém leva a mal e com que todos se enfeitam. O maldito é rebelde, violento, propenso a transes artísticos e a trabalhos febris, é cru, duro, miserável e rocambolesco, capaz de largar um pão mas incapaz de se esquecer de um verso e leitor voraz a despeito da pobreza que não o deixa comprar livros.

Entre o maldito de João Pedro George e os maudits de Verlaine mudou o mundo, mas não mudaram os escritores. A única diferença, e mesmo assim mais subtil do que uma distinção escolástica, foi a América que a trouxe. O maldito europeu é um solitário, um anacoreta sem fé que paga no aspecto pela miséria do mundo; o maldito ao género Americano, porém, é mais gregário: Kerouac funciona em grupo e Bolaño também. Este Espírito da ficção científica, aliás, é acima de tudo sobre o comportamento de uma tribo maldita. Embora, como bem refere João Pedro George, a boémia seja desde sempre característica do maldito, na América a figura do solitário acaba por ser invertida. Quem funciona individualmente é o professor universitário, preocupado apenas com a sua carreira, sem gastar uma existência literária com um proto-gangue que encontra inspiração nas vascas do crime. Jan e Remo, no livro de Bolaño, não têm a vertigem papa-léguas as personagens de On the Road, mas fora isso, podiam coabitar: são também jovens, neste caso praticamente adolescentes, igualmente libertinos, também eles alérgicos à alta literatura (o fascínio, no Jan de Bolaño, é a ficção científica), como os outros manientos e obsessivos em relação 3a trivialidades a que dão grande importância literária.

O romance de Bolaño vive disto: do ambiente estiloso, excessivo, da mistura entre disparates adolescentes e consciência poética, das paixões vulgares vividas com sensibilidade aguçada, de pancadaria, bebedeiras, sexo, velhacarias de anti-herói, amores e fascínios literários; Bolaño dá às personagens um toque viril intelectualizado, mistura o interesse pela ficção científica que dá ao cenário uma leve sépia revivalista, escora o enredo numas obsessões difíceis de explicar e troça do mundo literário anónimo e um tanto pretensioso transversal a todos os países.

Tudo, porém, converge nesta ideia de maldito: uma vida não convencional, com as bebedeiras e os amores da praxe e uns tópicos habituais nos malditos do outro lado do Atlântico. Jovens porque os mais velhos já estão instalados na vida pacata, pobres aventureiros porque são mais pela arte da vida do que pela poética pura, amantes da literatura suja, daquilo que é considerado lixo porque se opõem às convenções, obsessivos para se aproximarem do binómio génio-louco, um tanto incoerentes e absurdos para mostrarem que a lógica não expressa satisfatoriamente a consciência poética. Não são tão intelectuais como os seus sequazes europeus, nem têm uma vida tão angustiada. O maldito americano (seja do Norte ou do Sul) é o maldito do prazer, da vida vulgar filtrada por outras lentes. E embora Bolaño as areje com um fio de ironia, O espírito da Ficção Científica tem o problema do maldito: é possível ser mais alarve, mas não é possível inventar de novo a alarvidade; é possível ser mais original, mas se é esse o critério, então seria preciso inventar outra vez a originalidade.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.