Uma estrutura cilíndrica gigante com aspeto inacabado ocupa, por estes dias, o claustro do Mosteiro de São Bento da Vitória, no Porto. No centro da estrutura fica o palco onde, esta quinta e sexta-feira, a artista e ativista cubana apresenta, em estreia mundial, “Endgame”, a partir da peça com o mesmo nome de Samuel Beckett. À primeira vista parece não haver espaço para o público assistir. Há. Só não é aconselhado a quem tem medo de alturas e de espaços fechados. E a quem não tem medo de fazer um exame de consciência à forma como enfrenta, ou não enfrenta, o poder.

“O público tem uma responsabilidade em toda a obra. Estamos a dar-lhe uma tarefa, tal como aos atores”, explica a artista cubana, após um pequeno ensaio de imprensa. A primeira tarefa é entrar na estrutura e decidir se quer ver o espetáculo a dois, quatro ou seis metros de altura. Depois, se quer assistir ao que se vai passar lá em baixo, tem de enfiar a cabeça por entre os rasgões do pano branco que rodeia todo o cenário. Os corpos ficam de fora e um máximo de 82 cabeças espreitam por entre a estrutura. A posição algo incómoda em que o espectador é desafiado a ver o espetáculo — de pé, curvado, com a cabeça enfiada num rasgão de um pano — encaixa-se no desafio. “Queremos que o público se lembre de que tem um corpo, que é alguém, que respira, que pode fazer algo.”

“Endgame” é em tudo fiel à obra que Samuel Beckett concluiu em 1957, faz agora 60 anos. Mas como o dramaturgo e encenador irlandês não especificou como é que o público podia ver a peça, a artista tomou a liberdade de inovar. No centro da ação está Hamm (Brian Mendes), um tirano que dita ordens fortes, mesmo se a sua posição é fraca: é cego e mal se mexe, estando confinado a uma estrutura que é parte maca, parte cadeira de rodas. Parece ter tanto poder quanto parece fragilizado. A obedecer às suas ordens está Clov (Jess Barbagallo), escravo, subserviente, notoriamente descontente com a sua situação. A certa altura, há-de perguntar-se: “Porque é que obedeço sempre?

Há várias escadas por onde o público pode subir. Depois, é só parar em frente a um dos rasgões do pano, enfiar a cabeça e ver o espetáculo. © Susana Neves / TNSJ

É como se, elevados, nos estivéssemos a ver a nós próprios no papel de Clov. O cenário todo branco é claro, tal como pretende ser a mensagem. “A tarefa dos espectadores é decidir se vão fazer parte ou não, se se vão envolver na situação… Quando decides não fazer nada, estás a deixar que outra pessoa decida por ti. Essa decisão não só desgasta o cidadão como o converte num escravo, numa pessoa que deixa de pensar por si mesma. É importante que o público se veja como parte do problema“, afirma Tania Bruguera, ela que já venceu quase duas dezenas de prémios internacionais, mas que também já foi presa e libertada três vezes entre dezembro de 2014 e janeiro de 2015 por ter organizado uma performance sobre liberdade de expressão na Plaza de la Revolución, na capital cubana.

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No final de 2016, a artista anunciou que se vai candidatar às eleições presidenciais de Cuba, uma ditadura governada atualmente por Raúl Castro. O sucessor de Fidel anunciou que se irá retirar em 2018 e Tania quer candidatar-se ao lugar. Filha de um ex-vice-ministro e diplomata do regime, e com uma voz política ativa e dissidente, bem que poderia ser verdade. Com um senão: em Cuba há um partido único e as candidaturas à presidência não são livres.

A atuação dos atores é um espelho de como a maior parte das pessoas se comporta perante a autoridade e o poder. Tania Bruguera acredita que os cidadãos não são espectadores, mas sim são agentes ativos. Como ela. “É o que estamos a querer dizer com esta obra”, clarifica. É a primeira vez que faz teatro, mas há 20 anos que esperava pela oportunidade de erguer este espetáculo. Há duas décadas, a vontade vinha da experiência que tinha com Cuba e com “quão sedutores os ditadores podiam ser”. “Alguns conseguem ser muito charmosos e atraentes. Agora, com Erdogan na Turquia e com Trump nos Estados Unidos, aparentemente as pessoas são seduzidas pela ideia de não pensarem“, lamenta.

Hamm está confinado a esta estrutura. Apesar da fragiliade que lhe vemos, vai ditando ordens ao seu escravo. © Susana Neves / TNSJ

Pegando na pergunta de Clov, porque obedecemos então? “As sociedades modernas, especialmente o capitalismo, estão feitas para que as pessoas acreditem que não conseguem mudar nada. Que a mudança é uma coisa macro na qual eles não têm nenhuma influência e acredito que toda a educação cívica que é dada às pessoas é para que pensem que não conseguem mudar nada. Acho que é por isso que nos é tão fácil obedecer”, diz. Há que contrariar essa educação e “Endgame” quer ter um papel nesse processo.

“Endgame” propõe, ainda, que as relações entre personagens sejam também transportadas para os atores que as representam. A peça tem dois atores profissionais, Brian Mendes e Jess Barbagallo, e dois performers amadores (Lara Ferreira e Pedro Aires). O espetáculo conta ainda com duas voz-off (Chloe Brooks e Jacob Roberts) transmitidas através de um equipamento de som que está à volta do público.

“Endgame” está inserido no BoCA, “Biennial of Contemporary Arts”, que decorre até 30 de abril, e é uma coprodução do Colectivo 84, Théâtre Nanterre-Amandiers/Festival d’Automne à Paris, Kunstenfestivaldesarts, International Summer Festival Kampnagel, Estudio Bruguera e Teatro Naciona São João. O espetáculo é falado em língua inglesa e o preço dos bilhetes é de 10 euros.

Depois dos quatro apresentações em Portugal (quinta e sexta-feira, às 15h e às 21h), segue para outros países. Porque “estamos a ser fracos perante as personalidades políticas fortes, que estão a tomar o espaço que é dos cidadãos”. E porque, como disse ao jornal britânico The Guardian, “é relevante hoje, numa altura em que o mundo parece seduzido por figuras ditas fortes, e quando a democracia é abusada em vez de ser fortalecida. Parece que estamos no final de um capítulo.”