Título: A Guerra de Samuel e Outros Contos
Autor: Paulo Varela Gomes
Editora: Tinta-da-China
Páginas: 264
Preço: 16,90€

Paulo Varela Gomes foi um professor universitário fundador do Bloco de Esquerda que lhe viu ser diagnosticado, em Maio de 2012, um cancro inoperável que conduziria à sua conversão ao catolicismo, em finais de 2014, tal como o próprio descreve num texto poderosíssimo publicado originalmente na revista Granta. Aí, narra o momento em que, preparado para se despedir do mundo, já com uma caçadeira pronta a disparar encostada à boca, sentiu uma alegria inexplicável causada pelo cheiro da hortelã-pimenta, que o levou a abandonar o seu projecto suicida. Varela Gomes morreu em Abril do ano passado.

Apesar de sucinta, a biografia acima é fundamental para que se possa perceber o que está em causa em A Guerra de Samuel e Outros Contos (publicado apenas este mês, mas escrito entre 2013 e Fevereiro de 2016). O objectivo deste artigo será, então, tentar explicar a relevância da profissão, da doença e da conversão do escritor para a compreensão dos oito contos que nele encontramos.

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Numa entrevista de 2013 ao Público, Varela Gomes afirmava que um dos seus objectivos enquanto escritor era o de misturar o ensaio e a ficção sem que esse entrosamento deixasse as costuras à mostra, para assim se libertar dos constrangimentos impostos pela escrita ensaística. No entanto, particularmente no conto que dá título ao livro, o escritor parece ficar refém dessa indefinição entre dois caminhos, servindo a narrativa apenas para contextualizar uma discussão sobre a ideia de decadência e de evolução. Se os primeiros capítulos de “A Guerra de Samuel” revelam um escritor talentoso e uma prosa elegante, rapidamente o romancista é substituído pelo ensaísta, a narrativa pára abruptamente e somos colocados diante de um curto ensaio acerca do fim do estado social e da sociedade ocidental. Esta opção estilística de Varela Gomes leva a que, em alguns dos seus contos, as personagens se transformem apenas em pontos de apoio para que o ensaísta fale daquilo que o preocupa, sem ter que recorrer a remissões bibliográficas ou notas de rodapé. É, assim, peculiar o momento em que o narrador da história de Samuel afirma ser o rosto do protagonista “o único pormenor que interessava” (p. 93), visto ser esse rosto constantemente negligenciado ao longo do conto.

São, no entanto, a doença e a conversão por esta originada os elementos centrais desta colectânea de contos. O que encontramos nestas oito histórias é sempre a luta entre o autor e Deus, que mais do que evocar Jacob, nos traz à memória Flannery O’Connor. Tal como a escritora norte-americana, a descoberta da morte e do cristianismo leva a que Paulo Varela Gomes esteja constantemente a remoer as mesmas perguntas através de histórias em que é a sua própria vida (ou melhor, a sua própria morte) que está em causa, aparecendo o cancro por toda a parte (é um cancro que vitima a professora ressuscitada, em “A Ressurreição da Senhora Professora” e Dulce, em “Apoptose”, é o cancro uma das principais pragas enumeradas em “Até ao Fim” e “O Jardim do Éden” e tem um papel central, como se verá mais à frente, em “A Baleia”). Varela Gomes cita recorrentemente os mesmos versículos da Bíblia, as mesmas frases de teólogos famosos, não por vontade de ostentar a sua enorme erudição, mas para que consiga descortinar a verdade que se esconde por detrás delas. As personagens dos contos de A Guerra de Samuel estão sempre preocupadas em articular a ideia de um Deus misericordioso com a existência de Inferno, querem perceber se é ou não possível a salvação universal ou se algumas pessoas que renegaram o Espírito Santo a vida inteira estarão impedidas de encontrar a redenção no final dos seus dias. É-nos, assim, dado acesso ao combate espiritual em que o escritor vivia nos últimos anos da sua vida, combate esse onde o cancro parece ser visto uma e outra vez como uma maneira de Deus podar a humanidade, de cortar alguns ramos para que a sua criação floresça de novo, mas agora com mais força, agora já sem a rama inútil à sua criação. Varela Gomes faz de si mesmo uma vítima no holocausto, na purga que o Deus misericordioso deseja fazer no mundo para que este regresse ao princípio, ao Jardim do Éden, onde não haverá mudanças nem decadência, onde a felicidade está na estabilidade e não na mudança que o escritor parece aliás desprezar, por conduzir sempre à decadência.

A descoberta do catolicismo não leva a que, em nenhum momento, o fundador do Bloco de Esquerda transforme as suas personagens em porta-vozes do Vaticano, parecendo Paulo Varela Gomes mais interessado em encontrar o seu próprio caminho de beatitude, “que é como uma ténue e frágil pista marcada na areia do deserto” (p. 155), do que em subscrever inteiramente um credo. É por esse motivo que a sexualidade está muito presente e é encarada com uma leveza que relativiza o peso pecaminoso que lhe seria conferida caso Varela Gomes se deixasse guiar apenas pelo catecismo e é também por isso que as mulheres ocupam em todos os contos um papel muito mais central dentro da hierarquia da Igreja do que aquele que lhes vemos reservado nos dias de hoje (não deixa de ser curioso sob esse ponto de vista notar que Deus é uma mulher, de acordo com a Igreja da Vida Eterna que, no último conto do livro, é escolhida para escapar intacta ao apocalipse). É, então, a busca da verdade, e não a sua descoberta, o tema de A Guerra de Samuel, é do lugar que lhe pertence na criação que Varela Gomes anda à procura, o que leva a que as histórias só possam, portanto, ser compreendidas quando articuladas com a sua biografia. Talvez seja por isso que o milagre da professora ressuscitada tenha lugar precisamente em Penela, o concelho onde o autor habitava.

É lido à luz de uma interpretação biográfica que o melhor momento de “A Baleia”, o mais extraordinário dos contos de A Guerra de Samuel, ganha uma nova dimensão que de outra forma permaneceria insuspeita e que nos permite compreender melhor o que interessa verdadeiramente a Varela Gomes. Na história de Baleia, uma rapariga com uma doença hormonal que a faz engordar extraordinariamente, é dito que, no século XI, se começou a associar a baleia ao Leviatã, um gigantesco monstro marinho que percorreria os oceanos, para que assim estas se tornassem demoníacas, justificando-se dessa maneira a sua caça e destruição. Ao fazer-se isso, a baleia transforma-se num “instrumento do castigo divino. Faz parte da Criação mas é exterior à sua positividade. Marca os limites a partir dos quais a Criação se torna maligna, como as células enlouquecidas ou maldosas do cancro” (p. 133). Varela Gomes está com isto a sugerir que o cancro, tal como a baleia para os que a consideravam o Leviatã, apesar de fazer parte da criação, não participa da sua bondade, sendo antes o pesticida que Deus lança no mundo para impedir a sua completa destruição. No entanto, acrescenta o escritor, não é desta forma que a baleia é descrita no Livro de Jonas. Vemos assim que, mais do que a contar a história desta rapariga ostracizada, o escritor está à procura da maneira certa para encarar a doença que o viria a matar. Porque Varela Gomes não sabe se há-de ver o seu cancro como o instrumento da violência misericordiosa de Deus, como o holocausto que o Deus de Abraão deposita na Geena, como apenas outra parte da criação que (tal como a hortelã-pimenta de sua casa) é colocada no seu caminho, não para o destruir mas para o salvar, ou como a baleia que o engolirá para o depositar de seguida no lugar que o seu Senhor lhe reservara junto de Si.

João Pedro Vala é aluno de doutoramento do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa.