As “placas tectónicas” da política francesa mexeram, como Marine Le Pen previu. Estamos no ponto em que um ex-presidente da Câmara de Paris, Bertrand Delanoë, vem lembrar, numa intervenção na rádio RTL, que Hitler foi eleito por sufrágio universal, pedir “responsabilidade e consciência” e um voto em Emmanuel Macron. Será que os franceses, logo os franceses, se esqueceram das agruras da ocupação nazi?

Possivelmente não é por isso que a marca Le Pen ainda continua inquinada, apesar dos esforços hercúleos da sua mais mediática herdeira, Marine, para desintoxicar a marca da Frente Nacional. Perdão, Marion Anne, a filha mais nova de um clã de três meninas loiras, filhas de um dos mais controversos políticos de França, Jean-Marie Le Pen.

As sirenes estão todas a soar ao mesmo tempo nos corredores da política francesa, mas são ecos que não chegam às zonas rurais nem às do “cinto desindustrializado” no Norte, onde Marine caminha como uma local, apesar de ter crescido em Paris, entre apartamentos no centro e vilas apalaçadas nos arredores, guardadas por dobermans, no alto de colinas.

Aos 30 anos, Marine torna-se vereadora pela Frente Nacional em Hénin-Beaumont e é logo aí que começa a mudar, primeiro a sua perspetiva sobre quais devem ser os principais objetivos do seu partido e, logo a seguir, o seu discurso. O partido passou de um “disco riscado” que falava apenas dos problemas da imigração, da contaminação da “raça francesa” e da “ocupação estrangeira” para uma plataforma com uma cartilha muito mais abrangente, que falava para os que foram “abandonados” pela globalização galopante promovida pelas elites — e este grupo é imenso.

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“Eu falo pelos valores do cidadão comum. Não tenho que fingir ser um deles, eu sou um deles”, disse Marine ao diário Guardian em 2012.

O meu pai é filho de um pescador, a minha mãe é filha de um pequeno comerciante. É daí que eu venho: de um lugar onde há respeito pela honestidade, pelo trabalho árduo, pelo mérito, pelo patriotismo e um sentido de sacrifício, liberdade e disciplina”.

E em 2012, o que defendeu Le Pen?

Muitas das mensagens com as quais fez campanha em 2012 voltaram ao seu manifesto de 144 promessas para 2017. Mas outras mudaram substancialmente.

Defendia a reinstituição da pena de morte, em 2017 já não.

Considerava a energia nuclear “um perigo” — agora quer manter o nuclear.

A interrupção voluntária da gravidez era, no seu discurso de 2012, “uma política de conforto”, ou seja uma lei que servia como contraceção e teria que se tornar mais restritiva — hoje diz que não vai mexer na lei.

Quanto à proteção social, Le Pen prometia, em 2012, acrescentar 200 euros a todos os salários baixos — agora são 80 euros.

A saída do euro e o regresso do franco era a clara mensagem de 2012, mas agora Le Pen fala na coexistência das duas moedas e num referendo à permanência na União Europeia, não apenas à continuação da moeda única.

Mas o caminho até à votação que Marine Le Pen teve no passado dia 23 de abril, cerca de 7,8 milhões de votos, a melhor da Frente Nacional em eleições nacionais, está a ser desenhado há muito. A sua prestação na primeira volta é apenas o último passo na progressão do seu partido: de 14,38% em 1988 para 15% em 1995, 16,86% em 2002, 17,9% em 2012 e 21,5% em 2017. Um dos principais capítulos foi fechado por Marine de forma implacável, com o afastamento do seu pai do partido, em 2015.

Marine Le Pen com uma das crianças num hospital em N’Djamena, no Chad, em 2017 @BRAHIM ADJI/AFP/Getty Images

A ideia era mesmo expulsá-lo, como foi acontecendo a todos os outros membros que demonstravam posições antissemitas e supremacistas — um problema que se mantém nas fileiras atuais –, mas o tribunal em Nanterre disse que ele poderia permanecer como presidente honorário do partido que criou em 1972. Marine parece pouco importada com as opiniões do pai, que ainda recentemente a acusou de ser “pouco agressiva”. Não fala com ele desde o drama que arrastou o nome da família Le Pen pelos tribunais e pelas páginas dos jornais que desenterraram o passado conturbado do clã. Mas Jean-Marie Le Pen ainda dá dinheiro à causa — o último cheque foi de seis milhões de euros.

Marine também não fala com a mãe. Toda a sua vida foi passada a lidar com os problemas, colocando tudo preto no branco, tanto no plano pessoal como no político. Para os seus críticos é populismo, é a simplificação de problemas complexos que ela pode não conseguir resolver como promete, mas para Le Pen é a única forma de lidar com o que ela considera estar mal.

“Pôr a França de novo em ordem” é contratar 20 mil novos polícias, e dar aos guardas alfandegários poderes para deter imigrantes.”Proteger a agricultura” é taxar as importações. Na mesma linha, baixar o custo de vida é sair do euro, apesar de ser difícil prever as verdadeiras consequências, por exemplo, no valor das poupanças dos franceses.

Esta abordagem “é a principal nova arma da nova Marine Le Pen”, diz ao Observador Pascal de Lima, professor de Previsão Económica e Política no Science Po, o nome pelo qual é conhecido o Instituto de Estudos Políticos de Paris, onde Emmanuel Macron também estudou. “É a encarnação do populismo”, diz. E o que é populismo exatamente? “É díficil de explicar, mas um professor que conheci, e que estuda estes movimentos, disse-me uma vez o seguinte:

O populismo é a redução da política a uma conversa de café. No café é que se fala das coisas sem consequência, são apenas queixas e para todos os problemas existe sempre uma solução óbvia.

Numa conversa a partir da capital francesa, o professor, luso-descendente residente há 44 anos em França, diz que a mudança que Marine Le Pen conseguiu pôr em marcha na Frente Nacional “começou há cerca de ano e meio” e é por isso que “é tão admirável o que ela já conseguiu atingir”.

“Desde que a campanha começou em força, Marine Le Pen começou a diversificar muito o seu discurso, fala mais de economia, de como funciona a Europa e de que forma prejudica os franceses, do mercado de trabalho, mas tudo isto utilizando termos muito simples. Isto é um perigo, porque as pessoas são levadas a acreditar que estas soluções são fáceis”, diz o professor.

Mas ela própria, “fisicamente”, também mudou, diz Pascal de Lima. “É uma diferença impressionante da campanha de 2012 para cá, e mesmo já depois disso, a roupa dela, mais clara, os sorrisos, os constantes sorrisos, a forma como aparece na televisão, muito mais liberta. Ela era uma figura muito austera, muito séria, que nunca se deixava apanhar em situações que a mostrassem vulnerável. Agora posa com gatinhos”, diz o professor.

Marine Le Pen numa conferência de imprensa em Paris. MARTIN BUREAU/AFP/Getty Images

Em França coabitam metade de todos os judeus da Europa ocidental e também a sua maior população muçulmana e não é de agora a luta entre os que aceitam esta realidade e os que têm alguma dificuldade em viver com ela. Pascal de Lima “pondera acreditar” que Le Pen é de facto diferente do seu pai, mas “não acredita” que o partido tenha mudado “um milímetro”. Uma análise da revista Jacobin detalha a proveniência de vários membros da Frente Nacional, muitos deles de guerrilhas paramilitares.

“O problema da Frente Nacional não é só Jean-Marie Le Pen. Os líderes regionais do partido, os seus membros, os conselheiros, quem os financia e mesmo o círculo mais próximo de Le Pen é mesmo muito extremista. Lembro-me de a ver numa ação de campanha há uns cinco anos e ela fazia-se acompanhar de pessoas com um passado na extrema-direita assustador”.

E aproveita para fazer uma comparação com o outro partido eurocético e anti-imigração, o UKIP (Partido para a Independência do Reino Unido), durante anos dominado por Nigel Farage, que recentemente tornou público o seu apoio a Le Pen e liderou a campanha pelo Brexit. “Está a ver o Brexit e o UKIP e aquele discurso nacionalista deles? Os círculos da Frente Nacional têm um historial de extremismo que nem se pode comparar”.

Um caminho cheio de curvas

Quando tinha oito anos, a pequena Marine acordou com um estrondo e, quando se levantou da cama e colocou os pés no chão, pisou vidros da janela da cozinha. A sua casa tinha sido atacada. Uma bomba destinada ao seu pai, que falhou o alvo. Quando tinha 16 anos, a sua mãe fugiu com um amante, um escritor que o pai tinha contratado para escrever a sua biografia. Marine não lhe falou durante 15 anos. Em vez disso, começou, aos 14 anos, a acompanhar o pai nos comícios na tentativa de forjar uma relação com o “progenitor” que lhe restava. As fotos de Marine no trilho da campanha mostram uma jovem alta, sorridente, cabelos enormes e loiros ao vento, olhos curiosos. Ou, nas palavras do pai, uma mulher “com uma aparência física impressionante, alta, elegante, grande, saudável rapariga loira… um espécime fisicamente ideal”.

O sucesso da era Marine estoirou no mainstream em 2014, quando o seu partido se tornou o mais representado de todo o contingente francês no Parlamento Europeu recebendo 24,84% dos votos (24 dos 74 assentos reservados a França). Se o fantasma do extremismo de Le Pen pai ainda estava tão presente na memória coletiva do país, porque é que mais de quatro milhões e meio de pessoas escolheram votar em Marine? Uma das respostas avançadas pelos analistas e pelas empresas de sondagens é o fenómeno dos “envergonhados”. No domingo, dia 7 de Maio, quando Marine Le Pen estiver nos boletins de voto ao lado de Emmanuel Macron, o centrista-sensação destas eleições, e não houver ninguém a ouvir, nem a ver, será que o voto irá para ela?

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Uma outra possibilidade que muitas vezes passa ao lado das análises é o facto de muitas das pessoas que constroem a opinião em França terem estudos superiores e uma vida relativamente menos atribulada do que a população mais velha, que viu muita da indústria desaparecer com a deslocalização da produção ou os acordos com a Europa para a reduzir.

Cerca de 50% das pessoas que votaram na Frente Nacional em 2011 e 2012 (antes e depois de Marine ter tomado as rédeas do partido) têm menos que o equivalente ao 12º ano, e estas pessoas não são bem representadas, nem pelos políticos, nem pelos jornalistas. É por isso possível que o número de apoiantes da Frente Nacional não esteja a ser bem quantificado. Aliás, as sondagens em França têm sempre menosprezado as chances da Frente Nacional. Com Jean-Marie foi assim: ele passou à segunda volta em 2002 contra todas as expectativas e Marine há muito que passou os 16% que levaram o seu pai a esse patamar.

Outro fator a favor de Le Pen são as camadas mais jovens. Segundo uma sondagem da Ifop feita em março, Marine Le Pen é a candidata preferida dos jovens entre os 18 e os 25 anos. Ao todo, 29% disseram que iam votar na candidata da Frente Nacional. Se a abstenção se situar, como diz a última sondagem também da Ifop, perto dos 20%, a tempestade ainda pode acontecer. Le Pen teve 22% dos votos na primeira volta e, se mais ou menos o mesmo número se abstiver, há uma réstia de esperança para a Frente Nacional.

Quando a geração selfie se alia a Marine Le Pen

A rosa azul da impossibilidade possível

Como explicam Daniel Stockemer e Mauro Barisione num ensaio para o European Journal of Communication “Marine Le Pen conseguiu, com duas ferramentas simples, mudar a Frente Nacional. Primeiro através da imagem, retirando os símbolos associados com o passado extremista da organização, e, ao mesmo tempo, através do discurso que se tornou mais populista, revestindo o leitmotif do partido, que continua a ser o controlo da imigração, de roupagens menos racistas e mais utilitaristas”. Os dois teóricos analisaram também os “gostos” na página do Facebook da Frente Nacional, de 2012 a 2015, e verificaram que este novo discurso tem um maior impacto junto de simpatizantes do partido.

Pelo caminho ficaram as insistências do pai de que “as raças não são todas iguais” e que “as câmaras de gás nazis são um pormenor na história da Segunda Guerra Mundial”. Marine fala de “cultura e língua” francesas, “Islão” e não “muçulmanos” e até já tornou público o apoio à união homossexual. Não se tornou “frouxa”, mas tornou-se menos abrasiva, e não foi preciso mudar assim tanto.

Dos brutos de cabeça rapada e biqueira de aço que faziam a segurança dos eventos da Frente Nacional, Le Pen passou para as raparigas jovens, de t-shirts brancas com um nó de lado onde se lê apenas “Marine Presidente”, com uma rosa azul, sem espinhos, a separar as duas palavras. Na inauguração da sede de campanha para as presidenciais de 2017, ela mesma explicou que uma rosa azul é “uma impossibilidade que mesmo assim pode acontecer”, uma referência à sua luta para chegar ao topo da política. Ela, uma Le Pen.

“Ela é uma mulher relativamente jovem, utiliza essa imagem mais apaziguadora. É muito boa a passar a sua mensagem. Muito, muito melhor que o seu pai”, disse Nonna Mayer, uma especialista da Sciences Po na extrema-direita francesa, ao The Guardian. Mayer ressalva, contudo, que uma mudança de estratégia não é uma mudança de ideologia: “A política de encontrar um bode expiatório está lá como sempre esteve, ainda é extremo, não dá para escapar a isso”.

Também Olivier Roy, um académico francês e muçulmano que estuda o islamismo na Europa, escreveu no New York Times que, “por cada simpatizante da al-Qaeda, há milhares de muçulmanos que vestem a farda do exército francês (incluindo, claro, no Afeganistão) mas isto não é muito falado, porque não se insere na necessidade de ler os muçulmanos como dissidentes”.

Por muito que Le Pen tenha mudado o seu discurso, é compreensível que muita gente ainda se recuse a antecipar uma presidência ligada à Frente Nacional. Uma reportagem recente da Al Jazeera foi até às cidades francesas mais isoladas e por lá encontrou, entre outras coisas, um presidente de câmara que cortou a luz a uma organização que oferece refeições a sem abrigo, muitos deles imigrantes, mas também muitos deles franceses.