Quando há barulho a mais, seja por culpa dos catraios ou daquele open space cheio de gente, há uma velha técnica usada para chamar a atenção e acabar com a confusão: falar baixo. É meio passivo-agressivo mas costuma resultar. Gera sentimento de culpa no coração dos histéricos e vai direto aos nossos instintos de mamíferos, uma coisa meio pavloviana. Feist tem esse efeito, sempre teve, mas no novo Pleasure leva-o a um novo limite. Fecha-se no essencial, a voz (aquela voz) e um ou outro instrumento (quase sempre a guitarra). Ela começa, nós calamo-nos e tudo faz sentido. Até o título do álbum joga bem: em português chama-se “prazer”, mesmo que as 11 novas canções sejam sobre falsas aparências, desejos por cumprir, “o que é bom já lá vai” e outro material que dá sempre bom assunto para cantorias.

“Pleasure”; de Feist (Polydor; Universal)

E é logo aqui neste segundo parágrafo que está a grande questão. Sejamos frios nesta análise: tudo o que Feist canta não lhe é único, não são acontecimentos raros, é precisamente o contrário. Mas nem toda a gente consegue transformar a banalidade em bons discos. A grande maioria acerta na escrita de canções quando passa por uma fase irrepetível da vida, quando é atropelado por um pesado de emoções, quando lhe acontece uma desgraça ou uma epifania. Tramado é quando já não há surpresas, tramado é quando há pouco mais do que a rotina para inspirar seja o que for. Mesmo que a rotina seja feita tanto de despertadores e horas marcadas como de um coração partido — até ver, este último também não é exclusivo de ninguém.

O novo álbum de Feist é de tal maneira cru e verdadeiro que é fácil ouvi-lo e recordar aquela história sempre verídica (são as melhores, certo?): a da pessoa inevitavelmente desiludida que usa a expressão “é impossível o amor acontecer outra vez” como quem lava os dentes antes de se deitar. Ora o que costuma acontecer é que, de facto, o amor é impossível de voltar a acontecer depois de acabar; mas só enquanto não volta a cair em cima da vítima como fazem os pianos nos desenhos animados. Cai sem aviso, machuca sem matar, desfigura a pobre criatura que depois continuar a viver, marcado pelo que lhe passou por cima (como é que ele se safa depois é outra questão).

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[“Pleasure”]

Pleasure é mais ou menos isto, é um disco sobre os acidentes do amor e do sexo, um conjunto de canções sobre despedidas, sobre homens que não são bem o que parecem, sobre mulheres com dúvidas, sobre gente que não sabe para onde ir mas que sabe que vem de um sonho desfeito. E é tudo isto sem ser meloso, previsível e rotineiro, como poderia tão facilmente ser. O (des)romance cantado é uma armadilha de clichés difícil de enganar mas Feist sabe bem ao que vai. E desta vez pede emprestada a PJ Harvey muita da sem-vergonhice que faz de uma canção um punhal. E atenção que é uma bandidagem que fica muito bem à heroína indie pop que cantou a primavera-sem-fim que é, por exemplo, “1 2 3 4”.

Títulos de canções como “I Wish I Didn’t Miss You”, “Lost Dream”, “A Man is Not His Song” ou “It’s Not Running Away”. E versos desta categoria: “Deixava qualquer festa por ti”, “Baby, sê simples comigo” ou “Tudo o que cai está a cair”. Frases para a vida, rapaziada, quase sempre cantadas num misto de blues e folk, de angústia e “vai correr tudo bem, de alguma maneira”. Até ao final, perfeito, com “Young Up”: é um gospel que espalha a boa nova do carpe diem, um R&B em baixa rotação a explicar que está tudo inevitavelmente perdido — e assim sendo, mais vale não fazer tanto uso das preocupações, até porque estraga a pele. E, vai-se a ver, há sempre uma hipótese, há sempre mais um caminho para sentir prazer outra vez.

[ouça o álbum na íntegra através do Spotify]

Feist tem aquela voz, claro. Não é “só” aquela voz que pode cantar qualquer coisa, que tem sempre garantida toda a atenção de quem a ouve. Feist tem uma voz que funciona como um daqueles cavaleiros negros inventados por Tolkien, aqueles malvados do “Senhor dos Anéis” que sugam a energia de quem lhes passa pela frente. Leslie Feist, numa de feiticeira canadiana, resolve assim a questão: canta uma estrofe e um refrão e a energia de quem a escuta fica momentaneamente suspensa num espaço que não é fácil de definir. É um outro tipo de hipnose, menos educado porque não pede licença, mais gostoso porque é hipnose made in Feist. Este Pleasure é perfeito nessa missão. Tivesse mais uma ou outra canção que abranda o movimento de rotação da Terra como “A Man is not His Song” ou “Young Up” e era já um clássico. Fica no “quase”.

Bónus: Há uma canção em modo spoken word com a voz de Jarvis Cocker, dos Pulp. Chama-se “Century” e é como ir à missa dos românticos incuráveis, com o melhor dos sacerdotes, daqueles cheios de pecados. Sacana.