A 20 de outubro de 1973, o Procurador-Geral dos Estados Unidos e o seu adjunto demitiram-se depois de se recusarem a executar uma ordem do presidente Richard Nixon de despedir o procurador-especial apontado para investigar o caso do Watergate. Quarenta e cinco anos depois, a demissão imediata ordenada por Donald Trump do diretor do FBI ressuscitou o fantasma de Nixon. Porquê?

A história de Donald Trump e James Comey é longa e cheia de reviravoltas, especialmente do lado do candidato que virou Presidente. Durante a campanha eleitoral, Trump criticou Comey por ter feito uma conferência de imprensa onde anunciou que não havia motivos para uma acusação contra Hillary Clinton no caso dos emails com informação classificada que tinha no seu servido privado. Trump criticou a decisão, mas meses depois vinha elogiar a decisão do FBI de reabrir a investigação a semanas das eleições. Quando tomou posse, Trump até um abraço deu ao diretor do FBI que agora despediu, precisamente pela forma como liderou o processo.

Mas há uma sombra que paira sobre a decisão de Donald Trump de demitir James Comey: a do único presidente a demitir-se pelo maior escândalo político dos Estados Unidos. Richard Nixon foi vítima do Watergate.

Um longo e mal gerido processo

Muito do que foi o processo de investigação aos emails de Hillary Clinton foi fora do comum. As primeiras notícias de que Hillary Clinton teria usado um servidor de email privado durante o período em que foi Secretária de Estado de Barack Obama foram conhecidas no início de março de 2015, um mês antes de Clinton anunciar que era candidata à Presidência.

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Pouco depois de o próprio Donald Trump anunciar que iria tentar ganhar a nomeação republicana, o New York Times noticiou que o FBI tinha aberto uma investigação à forma como a antiga Secretária de Estado tinha lidado com informação confidencial, após terem sido encontrados centenas de emails no seu servidor com informação potencialmente confidencial.

Inicialmente, o Departamento de Justiça confirmou que havia uma investigação e que esta era de natureza criminal, mas na manhã seguinte o mesmo Departamento de Justiça disse que não se tratava de uma referência para uma investigação criminal. O primeiro grande ponto de controvérsia surgiu quando, a 5 de julho de 2016, James Comey convocou uma conferência de imprensa para dizer que Hillary Clinton foi “extremamente descuidada” na forma como geriu a informação confidencial que lhe chegou, mas rejeitou uma acusação criminal alegando que nenhum procurador “que fosse razoável” avançaria com um caso deste género.

Hillary Clinton teria no seu servidor privado centenas de emails com informação classificada, mas a sua defesa, e o próprio diretor do FBI, argumentaram que esta informação não estava classificada como secreta ou confidencial na altura em que os emails foram guardados, tendo a classificação sido feita posteriormente, depois de revistos pelas autoridades.

A conferência de imprensa e o anúncio de James Comey foram muito pouco comuns, desde logo porque essa é uma tarefa da justiça. O FBI é encarregue de investigar e fazer uma recomendação ao Procurador-Geral, que depois decide se avança para Tribunal, independentemente do que o FBI recomendar.

Por tudo isso, o diretor do FBI foi arrasado por Donald Trump e, especialmente, pelos republicanos no Congresso. A defesa de James Comey foi de que Loretta Lynch, Procuradora-Geral dos EUA, tinha recusado o caso depois da pressão pública de que foi alvo por se ter encontrado em privado com Bill Clinton, uma semana antes, no aeroporto de Phoenix. Lynch disse então que iria aceitar qualquer que fosse a recomendação dos responsáveis pela investigação.

Mas as maiores críticas estavam reservadas para mais tarde. A apenas duas semanas das eleições, com aplausos de Donald Trump, James Comey enviou uma carta ao Congresso a informar os líderes que o FBI tinha obtido novas provas no caso dos emails de Clinton, no servidor do antigo congressista caído em desgraça Anthony Weiner, marido de Huma Abbedin, uma das mais próximas colaboradoras de Hillary.

A carta, enviada onze dias antes da eleição, não só violou um princípio de longa data entre as autoridades e o Congresso para evitar ao máximo a interferência no período eleitoral da parte das autoridades. Hillary Clinton ainda hoje aponta a carta de James Comey como uma das razões para ter perdido a eleição. A investigação foi fechada pouco tempo depois, porque afinal poucos eram os emails que tinham sido reencaminhados pela colaborada de Clinton usando aquele servidor. Os que lá estavam teriam chegado via sincronização automática dos dispositivos de Huma Abbedin na sua casa.

Dos emails à Rússia, com um saltinho na Trump Tower

A relação entre Donald Trump e James Comey fluiu depois consoante a corrente noticiosa. Se eram positivas para a campanha (ou da presidência depois de 20 de janeiro), Donald Trump elogiava o diretor do FBI. Se eram negativas, Trump também não deixava nada por dizer.

Depois da turbulência durante o período eleitoral por causa da investigação ao servidor privado de Hillary Clinton, o primeiro grande embate surgiu quando o FBI, juntamente com as restantes agências de segurança norte-americanas, emitiram um comunicado onde afirmavam com um elevado grau de confiança que a Rússia teria tentado influenciar as eleições norte-americanas, e a favor de Donald Trump.

O FBI já tinha lançado uma investigação no final de julho de 2016 às ligações de alguns membros da campanha de Donald Trump à Rússia, entre eles Paul Mannafort, que chegou a ser diretor de campanha de Trump. A investigação continuou a ser liderada pelo FBI, com o apoio da NSA, da CIA e do Departamento do Tesouro.

Quando Donald Trump tentou contrapor com uma notícia onde de que Obama alegadamente o teria colocado sob escuta durante a campanha, James Comey terá pedido aos responsáveis do Departamento de Justiça para desmentir o Presidente. Isso nunca viria a acontecer, apesar de Obama ter rejeitado de imediato a acusação.

Só no final de março é que James Comey confirmou no Congresso que, de facto, o FBI tinha uma investigação aberta para apurar se algum dos elementos próximos de Donald Trump tinha colaborado com a Rússia para influenciar as eleições.

Durante este tempo, Michael Flynn, o general reformado que chegou a ter a pasta da coordenação das agências de segurança e informação na Casa Branca, foi demitido por Donald Trump depois de ter mentido ao vice-presidente sobre ter falado sobre sanções à Rússia com o embaixador russo nos Estados Unidos.

Demissão nixoniana?

A demissão de James Comey esta terça-feira chegou de forma inesperada, especialmente para o próprio, que na altura se encontrava numa reunião com o pessoal do escritório do FBI em Los Angeles. Soube pelas notícias.

Os argumentos usados por Donald Trump, Jeff Sessions e pelo procurador-geral adjunto Rosenstein estão todos eles ligados à forma como lidou com a investigação a Hillary Clinton.

O parecer mais completo foi feito pelo procurador-geral adjunto, que só está no cargo há duas semanas, num documento de três páginas onde ataca a decisão de James Comey de anunciar que não haveria uma acusação contra Hillary Clinton – argumentando que esta decisão não pode caber ao diretor do FBI – e a incapacidade do ex-diretor do FBI de admitir os seus erros.

Para fundamentar o seu parecer, Rod Rosenstein cita vários antigos responsáveis pela Justiça norte-americana, republicanos e democratas, para defender que Comey não tinha condições para continuar: “A forma como o Diretor geriu a conclusão da investigação aos emails foi errada. Por isso, é improvável que o FBI consiga recuperar a confiança pública e do Congresso até ter um diretor que entenda a gravidade dos seus erros e se comprometa a nunca os repetir. Tendo-se recusado a admitir os seus erros, não se pode esperar que o diretor seja capaz de aplicar as ações corretivas necessárias”.

Jeff Sessions passou a recomendação a Donald Trump, subscrevendo na íntegra, e Donald Trump aproveitou a deixa para não só demitir o diretor do FBI, mas também para relembrar que este lhe terá dito, “em três ocasiões diferentes”, que não está a ser investigado.

As comparações com o caso Watergate surgiram de imediato, especialmente com o famoso ‘massacre de sábado à noite’, o dia em que tanto o então Procurador-Geral, como o seu adjunto, se demitiram por se recusarem a executar a ordem de Richard Nixon de demitir o procurador-especial do caso Watergate, Archibald Cox. Elliot Richardson e William Ruckelshaus tinham prometido a Cox que este teria rédea solta para investigar o caso, mas quando Archibald Cox se recusou a aceitar uma ordem do Presidente de que não poderia ter acesso às gravações do sistema secreto montado por Nixon na Sala Oval, mas apenas a transcrições parciais das conversas entre Nixon e os homens do Presidente, como viriam a ser eternizados.

As gravações, das quais uma das mais importantes foi parcialmente apagada pela secretária pessoal do presidente em pelo menos cinco trechos, viriam a comprovar que Nixon não só tinha conhecimento da tentativa de escutar a sede dos democratas no edifício Watergate em Washington, como teria instruído a CIA a impedir que o FBI tivesse acesso a informação e testemunhas que fossem além do incidente do Watergate propriamente dito.

As escutas que Nixon colocou sobre si próprio e sobre os seus homens, juntamente com a investigação jornalística, especialmente dos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein, viriam a revelar um esquema muito mais elaborado. Envolvia sabotagem da oposição, uso de fundos da campanha para as forças de segurança espiarem os seus adversários, incluíndo jornalistas, e para travarem a investigação às manobras de Richard Nixon para vencer a eleição de 1972.

O paralelo com a atual administração começou a ser traçado no dia em que Donald Trump decidiu despedir a Procuradora-Geral interina Sally Yates, por esta se ter recusado, e ter dado instruções no mesmo sentido ao Departamento de Justiça, a aplicar a restrição à entrada de pessoas oriundas de sete países muçulmanos no país, uma das primeiras medidas de Donald Trump que veio a ser revertida pelos tribunais duas vezes.

No entanto, a própria biblioteca presidencial de Richard Nixon veio tentar corrigir a ideia de que esta decisão era ‘nixoniana’: porque nem Richard Nixon demitiu o diretor do FBI.

É verdade que Richard Nixon não demitiu o então diretor do FBI. Mas também é verdade que L. Patrick Gray, o escolhido por Nixon para substituir J. Edgar Hoover na liderança do FBI, esteve também implicado no caso do encobrimento do Watergate e das atividades dos homens do Presidente, conhecidos como a equipa de “canalizadores” dentro da Casa Branca.

L. Patrick Gray chegou a diretor interino do FBI em maio de 1972, poucas semanas antes de do ex-agente da CIA Howard Hunt e a sua equipa terem tentado colocar o edifício Watergate sob escuta. Uma semana depois da tentativa mal sucedida que levou à prisão dos seis homens, L.Patrick Gray, já diretor do FBI, foi convocado para uma reunião na Casa Branca com John Dean e John Ehrlichman, dois dos mais próximos colaboradores de Richard Nixon, que lhe entregaram um conjunto de documentos do cofre pessoal de Howard Hunt para que este os destruísse, algo que viria a fazer apenas seis meses depois. L. Patrick Gray confirmou também ao Senado que entregou documentos com informação confidencial sobre a investigação à Casa Branca.

O despedimento por Donald Trump de James Comey chega numa altura em que Comey teria pedido mais recursos ao Departamento de Justiça para investigar o caso da interferência russa nas eleições e a ligação dos homens de Donald Trump a este caso.

Apesar de Donald Trump já estar no poder há mais de três meses, o Procurador-Geral, que seria naturalmente o responsável por esta investigação, teve de pedir escusa devido a encontros que teve com o embaixador russo. Donald Trump e Jess Sessions acabaram por ter de esperar até que o procurador adjunto Rod Rosenstein fosse confirmado pelo Senado, algo que só aconteceu há duas semanas, para avançarem com a demissão do diretor do FBI.

Resta saber se Donald Trump e Jeff Sessions irão seguir agora os pedidos dos democratas para que aponte um procurador-especial independente para liderar a investigação.