Dos vários monstros clássicos do cinema, “nascidos” nos Estúdios Universal nos anos 30 sob a batuta do produtor Carl Laemmle Jr., a Múmia faz figura de parente pobre, por não ter, notou o escritor, crítico e historiador do cinema de terror Kim Newman, um “texto fundador”, como sucede com Frankenstein, criação literária de Mary Shelley, ou Drácula, saído da pena de Bram Stoker. A sua filmografia é menor em relação à destes dois, mas mesmo assim, de tempos a tempos, lá vai saindo do sarcófago para mais uma incursão devastadora no nosso mundo, como homem (o seu género original), mas também como mulher (a primeira vez foi em “O Túmulo de Sangue”, de 1971, quarto e último filme do ciclo “A Múmia” dos estúdios ingleses Hammer, e a honra coube à atriz Valerie Leon, no duplo papel da rainha Tera e de Margaret Fuchs, a mulher que esta possui.)

[Veja o “trailer” de “O Túmulo de Sangue”]

https://youtu.be/GinUdr1lPKI

A mais recente manifestação da sobrenatural criatura egípcia, agora de novo sob forma feminina, chega através da nova “marca” de filmes de terror da Universal, a Dark Universe, que quer injectar seiva fresca nos monstros clássicos da casa. O primeiro filme, que se estreia na quinta-feira, é “A Múmia”, de Alex Kurtzman, onde Tom Cruise e Russell Crowe se veem confrontados com a ancestral e temível princesa Ahmanet (a argelina Sofia Boutella). Esta nova ‘Múmia’, acordada de um longo sono na sua cripta sob as areias do deserto, tem muito mau feitio e contas muito antigas para ajustar, e vai espalhar o pânico, a destruição e várias pragas repugnantes no nosso mundo, com a ajuda dos melhores e mais sofisticados efeitos digitais que a Universal pode pagar (e o filme custou 125 milhões de dólares).

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[Veja o “trailer” de “A Múmia”, versão de 2017]

Estamos muito, muito distantes dos 200 mil dólares de orçamento da “Múmia” original, rodado a preto e branco em 1932, faz agora 85 anos, e que marcou a estreia na realização de Karl Freund, o diretor de fotografia de “Metrópolis”, de Fritz Lang, entre outros grandes filmes alemães dessa altura. A fita contava, para a criação das atmosferas de tensão e terror, apenas com a arte do realizador para orquestrar luzes e sombras, com a sinistra presença de Boris Karloff no papel principal e alguns incipientes efeitos especiais. Há quem diga que o autor do argumento de “A Múmia”, John L. Balderston, se foi “inspirar” discretamente no conto “The Ring of Toth”, de Sir Arthur Conan Doyle. Isto embora Balderstone, um dos jornalistas que cobriu a abertura do túmulo de Tutankhamon no Vale dos Reis, em 1923, tenha ido de certeza buscar ideias a este acontecimento que presenciou, e que lançou a moda das coisas egípcias no Ocidente.

[Veja os “trailers” de “A Múmia” de 1932 e de 1959]

Karloff não voltaria a dar corpo à Múmia nos cinco filmes seguintes da personagem (em dois deles, a criatura foi interpretada por Lon Chaney Jr., o Lobisomem da Universal). Esta série de títulos culminaria no embaraçoso “Abbott e Costello e a Múmia” (1955), uma comédia de terror com muito pouco para rir e registo zero no sustómetro. Em 1959, a Múmia voltou a limpar o pó das ligaduras, desta vez em Inglaterra, na Hammer, especializada em cinema fantástico. Foram quatro filmes, até 1971. No primeiro, assinado por Terence Fisher, Christopher Lee, que tinha sido Frankenstein e Drácula para o mesmo realizador em 1957 e 58, interpretou o terror ambulante vindo do Egipto dos faraós, combatido pelo seu colega e grande amigo Peter Cushing, no papel do arqueólogo John Banning. E fiel à tradição, esta Múmia procura ressuscitar uma paixão dos seus tempos de humano, a constante narrativa desta quase nonagenária série de filmes.

[Veja o “trailer” do filme de 1999]

Antes de reverter à condição feminina com Sofia Boutella no novo filme, a Múmia ainda foi vivida por Arnold Vosloo (duas vezes) e por Jet Li, nas três fitas realizadas entre 1999 e 2008 por Stephen Sommers (as duas primeiras) e Rob Cohen (a última), passadas no Egipto das décadas de 20 e 30, e na China pós-II Guerra Mundial. Tendo Brendan Fraser no papel do herói, um explorador americano, esta trilogia carrega insistentemente nas teclas da espetacularidade e dos efeitos especiais, além de ser muito apalhaçada e de ter pouco a ver com o terror egiptológico clássico, característico quer dos primeiros filmes da Universal, quer dos melhores da série da Hammer. Veremos agora como é que a princesa Ahmanet defende, nesta “Múmia” com “new look” e Tom Cruise, os pergaminhos dos seus milenares e amaldiçoados antecessores.