Não vale a pena fingir que o cronista destacado para o evento sabe imenso acerca da obra de Ariana Grande. Não sabe. E também não vale a pena assumir a pose presunçosa de não querer saber. É claro que este concerto foi investido de outra importância mediática por razões totalmente extrínsecas: os acontecimentos de Manchester, o enésimo ataque do Estado Islâmico, o medo e a estupefacção que sentimos perante o mundo e o tempo que vivemos. Mas é preciso olhar atentamente para tudo e tentar perceber. Tentar perceber com todas as forças. Mesmo que tudo isto insista em não fazer sentido algum.

Comecemos pelo que sabemos: Ariana Grande é uma jovem super-estrela de 23 anos, que veio dos musicais para a pop e se cruzou com a história trágica do presente quando um ataque terrorista matou 22 pessoas no fim de um concerto dela, em Manchester, semanas atrás. Dias depois e, na verdade, em tempo recorde, Ariana voltou à cidade para oferecer aos que ficaram uma noite de esperança, embalada pelo impressionante número de estrelas do firmamento pop que conseguiu arrastar. Que importa a pop – os Coldplay, Miley Cyrus, Robbie Williams, as guitarras eléctricas, os refrões sobre o amor, todos os lalalás do mundo – perante o horror absurdo de vivermos num mundo onde cobardes canalhas tiram a vida a crianças inocentes sem razão alguma, no meio de um momento de celebração? Nada – e quase tudo.

Ariana Grande deu ontem o primeiro concerto em Portugal, sensivelmente um ano depois de ter faltado, por razões de saúde, ao espectáculo marcado para o Rock in Rio. Actuou, com a precisão de um relógio, hora e meia exacta, perante uma Meo Arena não completamente cheia, mas quase, seguindo cirurgicamente o alinhamento da tournée: de “Everyday” a “into You”, com paragem em “One Last Time”, “Touch It”, “Side to Side”, “Bang Bang”, “Greedy”, “I Don’t Care”, “Love Me Harder” e na versão de “Somewhere Over the Rainbow”, antes do encore de um só tema, “Dangerous Woman”, que dá nome ao último álbum, à digressão e ao paradoxo da indecisão entre uma sensual declaração de emancipação e a figura de princesa adolescente da Disney com que ainda se apresenta. Não disse uma palavra sobre Manchester – o que não lhe fica mal, já que não deve nem quer certamente viver à custa da exploração do complexo da sobrevivente – nem de ter faltado, à última hora, ao encontro marcado com muito daquele público, um ano antes, no Parque da Bela Vista – e isso já lhe fica mal, porque mostra que ninguém na produção se lembrou do assunto e, portanto, por arrasto, quão indiferente é a localização de cada paragem da tour. Quão assépticas, anónimas, são estas noites de espectáculo bem oleado.

[Ariana Grande pôs no Instagram uma foto do concerto em Lisboa com a mensagem: “Obrigado, Lisbon”]

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Obrigado, Lisbon ♡ Eu te amo!!!

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A verdade é que Ariana está em Lisboa como poderia estar em Estocolmo ou em Buenos Aires. Debita tema atrás de tema, com a perfeição do inegável talento vocal com que a criação a brindou e a irrepreensibilidade científica de um laboratório. Os vídeos em ecrã gigantesco, os bailarinos bem coreografados, a banda escondida lá atrás como nota de rodapé, as luzes e o som sem mácula, numa sala onde já demasiadas vezes nos queixámos das insuficiências técnicas. Entrega um espectáculo perfeito, a uma plateia de crianças acompanhadas pelos pais e adolescentes que sonham ser, um dia, como ela, cheia de balões coloridos e telemóveis acendendo uma galáxia de pequenas luzes led, que conhece o alinhamento de cor e sai, no fim da última música, sem aplaudir mais do que antes, sem pedir “mais uma”, sem resistir até à última, esperando um momento fora do plano, um rasgo, um improviso, uma surpresa, ao contrário da geração dos pais, que sempre acreditou, romanticamente, na excepcionalidade das noites de glória em que a pop/rock nos podia salvar a vida.

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Resultado: Ariana Grande tem uma voz que faz vibrar cada viga de madeira do tecto da Meo Arena? Tem. Entregou ao seu público aquilo que ele esperava? Claramente. Tocou-nos? Não. Era suposto tocar? Provavelmente também não. Ariana é o que é: a imaculada superfície da pop e mais nada.

E aqui chegamos ao fim, ao que não sabemos, que é o que nos trouxe aqui, afinal, e permanece sob a forma de perguntas sem resposta. Porquê Ariana Grande? Porquê perpetrar um atentado terrorista entre miúdos inocentes que não têm qualquer responsabilidade nas escolhas da sua sociedade? Que mensagem se quer passar, se é que há alguma mensagem, se é que isto não é tudo casual, e se ataca num concerto de Ariana Grande, como se poderia atacar no de outro artista qualquer, de outra idade, de outro sexo, de outro género musical, ou num jogo de futebol, ou numa cerimónia religiosa, ou num banal dia de supermercado? Se é que não devíamos procurar as respostas que queremos fora da religião, do islamismo, do cristianismo, do oriente e do ocidente, e buscá-las entre sentimentos mais primários, de frustração, fracasso, ressentimento contra um mundo que achamos que não nos aceita ou compreende ou ama como deveria, na falência das utopias políticas, dos movimentos anarquistas, da incorrigível espécie humana.

Tipicamente, os actos terroristas são cometidos por jovens. Jovens não muito mais velhos que Ariana Grande. Não conseguimos deixar de pensar nisso enquanto assistimos ao tão imaculado como anódino espectáculo que dá, perante nós, esta noite. Como se houvesse uma só idade em que temos a energia para a construção ou a destruição totais; o encantamento ou o desapontamento; em qualquer caso, a paixão. Porquê?, continuamos a perguntar, mesmo sabendo que a resposta não virá.

Nesta noite, nada disto está no ar. Não há medo, não há sentimento de insegurança, não há Estado Islâmico, não há Manchester. Há crianças, adolescentes e famílias, em modo de domingo, celebrando-se, ouvindo Ariana Grande. Será inconsciência? Excesso de confiança no apertado controlo de segurança e/ou na pacatez de Lisboa? Também isto tem de ficar sem resposta. Em todo o caso, Deus os abençoe. Alá os abençoe. Enquanto for possível esta inocência, nem tudo está perdido.