As chamas que destruíram vários hectares de floresta na zona de Pedrógão Grande destruíram as antenas de comunicações — e o Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP), usado pelos bombeiros e por várias outras autoridades para comunicarem entre si, foi imediatamente abaixo. As equipas que no terreno combatiam as chamas só conseguiram assegurar a comunicação por vias alternativas e, segundo o primeiro-ministro, os meios não ficaram “comprometidos”. O problema foi superado ainda durante a noite de sábado: a MEO colocou vários carros na rua equipados com antenas móveis que asseguraram a normalização da situação.

Desta vez, a falha ficou a dever-se a problemas externos ao próprio sistema, mas o SIRESP tem um historial de complicações e polémicas de longos anos e não é a primeira vez que falha — um sistema com que António Costa se cruzou enquanto ministro da Administração Interna.

António Costa relançou sistema

Quando foi chamado para o Governo de José Sócrates, António Costa encontrou um modelo de SIRESP – sistema que tinha sido implementado ainda no executivo de António Guterres – em que encontrava mais problemas que méritos.

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O então ministro da Administração Interna contactou os parceiros de negócio – um conjunto de entidades sob comando da ex-Sociedade Lusa de Negócios, do Banco Português de Negócios de José Oliveira e Costa– e renegociou as condições do contrato em vigor, poupando mais de 52 milhões de euros ao valor (485,5 milhões de euros totais) que tinha sido acertado entre as empresas e o seu antecessor na pasta, o social-democrata Daniel Sanches. Na equipa que renegociou os termos do acordo com o consórcio estava já um nome que, mais recentemente, ganhou dimensão: Diogo Lacerda Machado, o “amigo pessoal” do primeiro-ministro que viria a ser contratado como consultor especial do chefe do Governo.

Quando chegou ao Governo, Costa pediu um parecer sobre o negócio à Procuradoria-Geral da República. Mas, apesar do tom crítico da análise ao documento e de ter declarado nulo o ato de adjudicação — parecer que daria ao então ministro respaldo para anular o concurso inicial e procurar novos interessados que não a SLN –, Costa optou por voltar-se para o mesmo consórcio e renegociar as condições do contrato original, abdicando de uma série de funcionalidades e reduzindo, com isso, o valor global do negócio.

Até ao final de 2014, escreveu o jornal i em fevereiro do ano passado, o SIRESP tinha custado aos cofres públicos 270 milhões de euros. O contrato – entretanto renegociado, de novo, pelo Governo –, tem, neste momento, mais quatro anos de vigência. Em poucos meses, depois de chegar à chefia do Governo, o primeiro-ministro conseguiu que todos os ministros envolvidos no dossier pusessem a sua assinatura na nova versão do contrato. Nesse momento, já o SIRESP acumulava problemas – os casos sucedem-se.

As falhas no SIRESP e as mortes de bombeiros

Um dos episódios mais graves em que a equação “SIRESP+falhas de operação” se verificou resultou na morte de dois bombeiros de Carregal do Sal. Foi em janeiro de 2014 que o Conselho Português da Proteção Civil (CPPC) deu a conhecer novos dados sobre os factos que estiveram na origem das duas mortes, nos incêndios do verão anterior. Na sequência da reportagem “Sem Rede”, emitida na TVI dias antes, o presidente do organismo garantiu que, “se o sistema funcionasse, os gritos de um dos intervenientes para tentar alertar aquela equipa [de que faziam parte os dois bombeiros, um homem e uma mulher] não seriam gritos, seriam comunicações via rádio. E os meios aéreos também não tinham contacto, não tinham forma de alertar aquela equipa”.

Dias antes, em comunicado, o CPPC referia que “o Conselho Português de Proteção Civil mantém contacto regular com diversos agentes de proteção civil e entidades cooperantes e sabe, de fonte segura, que não pode identificar, que a bombeira de Carregal do Sal, que perdeu a vida no verão passado, poderia estar viva se houvesse radiocomunicação de grupo que ligasse bombeiros, sapadores florestais e GIPS (Grupo de Intervenção Permanente da GNR)”. No ano anterior a este caso, o então ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, tinha distribuído cerca de mil novos rádios com o sistema SIRESP a várias corporações de bombeiros do país. Equipamentos que deveriam “praticamente duplicar a capacidade de comunicação instalada nas corporações”, disse o ministro.

Aquando da denúncia das falhas no sistema de comunicações, o CPPC dava conta de um outro episódio: “Foram ainda resgatados outros dois bombeiros noutra ocorrência no Caramulo, salvos devido à pronta intervenção de uma equipa do GIPS que se apercebeu da situação e, colocando as suas vidas em risco porque não tinham forma de comunicar com os bombeiros, não hesitaram em intervir para os salvar”.

A reportagem da TVI ilustrou vários dos contextos em que o SIRESP falha. Por exemplo, dentro de um elevador; no interior de garagens subterrâneas; em localidades mais remotas do país, aquelas que são mais afetadas pelos incêndios. Onde um telemóvel comum funciona sem dificuldades, o sistema de comunicação dos bombeiros, polícias e INEM não tem rede. Essas falhas foram também ficando plasmadas em simulacros realizados nos últimos anos pelas autoridades de socorro.

Por exemplo, em agosto de 2013, no Chiado. Um simulacro a propósito dos 25 anos do incêndio naqueles armazéns de Lisboa e que juntou várias corporações de bombeiros voltou a expôr as fragilidades do sistema de comunicações. “Essa questão foi levantada”, admitiu o então vereador Manuel Brito, com o pelouro da Proteção Civil. Os bombeiros que participaram no simulacro relataram dificuldades de comunicação num incêndio em meio urbano, em plena capital.

Em 2008, um simulacro nos distritos de Santarém, Lisboa e Setúbal já tinha tocado na ferida. “Nos últimos três dias, apreendemos e foram detetadas algumas insuficiências” e “fragilidades” no funcionamento do SIRESP, afirmou Gil Martins, então comandante operacional nacional da Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC). Entre as falhas encontravam-se, já nesse momento, falhas de comunicação e de gestão de informação entre as entidades no terreno. “Tornou-se impossível, por esta via, a comunicação entre Proteção Civil e INEM. Esta foi a grande questão que precisa de ser melhorada”, salientou o então comandante distrital de Operações e Proteção Civil, Rui Esteves.

Um negócio de milhões na mira do Ministério Público

Em 2005, o Ministério Público (MP) decidiu abrir um inquérito ao contrato de adjudicação do SIRESP, por suspeitas de tráfico de influências e participação económica em negócio. A investigação acabou arquivada, mas ficaram no ar suspeitas sobre a forma como o consórcio liderado pela ex-SLN, do grupo Banco Português de Negócios liderado por José Oliveira e Costa, conseguiu o contrato de quase 500 milhões de euros.

O contrato original foi assinado três dias depois das eleições que acabariam com o curto mandato de Pedro Santana Lopes como primeiro-ministro. Daniel Sanches, ex-procurador (e primeiro diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal), ex-diretor-adjunto da Polícia Judiciária, ex-dirigente do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e ex-diretor do Serviço de Informações de Segurança saltou da esfera pública para administrador de empresas da SLN em 2000.

Três anos depois, de volta ao Estado como ministro da Administração Interna de Santana Lopes, Sanches entrega o contrato à mesma SLN de que tinha acabado de sair. Valor da adjudicação: 538,2 milhões de euros, verba cinco vezes superior àquela que precisaria de ter gasto caso tivesse optado por um modelo diferente de comunicações. Essa posição foi defendida por Almiro de Oliveira, presidente do grupo de trabalho que presidiu ao grupo que estudou este sistema de comunicações.

Apesar de o inquérito do MP — entregue ao procurador José Azevedo Maia — ter sido arquivado uma primeira vez, em março de 2008, Oliveira e Costa e a filha (administradora de uma empresa do grupo SLN) chegaram a ser constituídos arguidos. Daniel Sanches nunca foi ouvido pela Justiça e, segundo escreveu na altura o Correio da Manhã, negou à comissão de inquérito parlamentar ao caso BPN ter tido qualquer intervenção no projecto apresentado pelo consórcio liderado pela SLN.

No ano seguinte ao arquivamento, o processo é enviado ao DCIAP, para que fosse analisada uma eventual reabertura. Pouco antes, tinham sido apreendidos vários documentos ao homem forte do BPN, Oliveira e Costa, que poderiam constituir “factos novos” na investigação ao contrato milionário. Mas não houve nada de novo. O arquivamento de 2008 continuou a valer.

Há, no entanto, outro nome de relevo em toda esta novela: Manuel Dias Loureiro. O homem que Cavaco Silva tinha escolhido para o Ministério da Administração Interna já era, no momento em que o contrato entre o Estado e a SLN acertaram o negócio, administrador não executivo do grupo ligado ao BPN. Esteve na administração de várias empresas do grupo que liderou o consórcio ao qual foi atribuído o contrato.

O negócio do sistema de comunicações haveria de cruzar-se, ainda, com o caso Portucale, um processo em que se investigava a declaração de “imprescindível utilidade pública”, também nos últimos dias do Governo de Santana Lopes, a um terreno turístico em Benavente. Mas nunca chegou a levar qualquer dos seus protagonistas a sentar-se no banco dos réus.