Pintura, escultura, desenho, fotografia, cinema, teatro, música, imprensa. É vasto o espectro de linguagens e artefactos na exposição sobre a I Guerra Mundial que é inaugurada nesta sexta-feira na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Trata-se de uma mostra “bastante abrangente e ambiciosa”, “muito documental e variada”, com “muita informação histórica”, resumiu Pedro Aires de Oliveira, um dos três comissários.

Intitulada “Tudo se Desmorona — Impactos Culturais da Grande Guerra em Portugal”, a exposição é de entrada livre e permanece até 4 de setembro no Edifício Sede da Gulbenkian, na galeria do piso inferior.

Durante uma visita guiada para a imprensa, na manhã de quinta-feira, Pedro Aires de Oliveira destacou a escolha de obras que “nunca antes foram mostradas em exposições públicas”, como seja um imponente tríptico naturalista de José Joaquim Ramos, que normalmente está no gabinete do Chefe do Estado Maior do Exército e foi agora cedido à Gulbenkian no âmbito da exposição. Também presente na visita guiada, a comissária Ana Vasconcelos detalhou:

“A parte central do tríptico é a que está no gabinete do Chefe do Estado Maior do Exército, mas as duas abas laterais estavam guardadas e foram restauradas há pouco tempo. Há sempre materiais inéditos. Há pouco tempo soube-se que havia caixas fechadas com obras do pintor Marcel Duchamp num museu em Filadélfia. O levantamento cultural é um grande magma que nós vamos agitando e levantando, há sempre coisas inéditas. A rápida passagem do tempo às vezes permite que uma pintura esteja muito tempo sem ser vista”, disse.

Outros inéditos são os gessos do escultor Teixeira Lopes, que serviram de estudos para o Monumento aos Mortos da Grande Guerra de La Couture, em França, inaugurado em 1928. Segundo Ana Vasconcelos, também há material documental novo, encontrado na Liga dos Combatentes e em outras instituições, durante o processo de pesquisa para a exposição.

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A mostra está organizada em torno de seis núcleos temáticos. O desenho dos espaços é do designer Mariano Piçarra, em colaboração com Luísa Ferreira. Cada núcleo é acompanhado por breves textos explicativos, decalcados nas paredes, e um friso cronológico corre todas as salas. Domina a cor laranja, a lembrar ferrugem — uma evocação da célebre frase de Adriano de Sousa Lopes (1879-1944), o único pintor português que esteve nas trincheiras da I Guerra Mundial: “Foram os tons que constantemente dominaram o ambiente desta guerra, isto é, o fogo, a ferrugem, a lama”, escreveu numa carta em Janeiro de 1932.

No dizer de Ana Vasconcelos, as diferentes linguagens técnicas e artísticas exibidas ajudam-nos a pensar o mundo atual.

“Um aspeto muito interessante desta exposição é a análise que podemos fazer sobre o que é o registo de reportagem, o que é o registo artístico, onde termina um e começa o outro. Vemos as fotografias não oficiais da guerra, que eram censuradas. E vemos que os artistas, tal como os fotógrafos, recuam e têm um pensamento crítico sobre a realidade a que estão a assistir. Isso aconteceu até mesmo com os artistas engajados, aqueles que foram chamados de propósito para registar a participação portuguesa na guerra. Ou seja, temos estes dois planos na exposição: o recuo da visão artística e a ligação ao imediato do objeto que se está a registar”, explicou a comissária. “Isto ensina-nos que a História é feita de interpretações. Houve interpretações na época, há interpretações atuais e houve todo um século de permeio de jigajogas interpretativas. Como é que olhamos, na nossa época conturbada, com outro tipo de guerras, para esta guerra? É uma questão muito curiosa.”

À entrada da exposição é distribuído um jornal gratuito, intitulado “O Mundo Derrubado”, com artigos de contextualização e resumos de cada um dos seis núcleos.

O primeiro, “Guerra Cultural e Mobilização Cívica”, inclui fotografias de Joshua Benoliel e reproduções de jornais, como “A Lucta”, com colunas em branco que representavam os textos censurados.

O segundo núcleo, “1917, Ano Crítico”, é sobre o quarto ano da guerra, marcado pelas Aparições de Fátima, a instabilidade política e social na Europa e nas colónias portuguesas, a ascensão de Sidónio Pais como chefe do Governo e ainda a Revolução Russa. Inclui a projeção de uma cópia de um filme de 35 milímetros, rodado em 1917-18, onde se mostram tropas portuguesas.

“Visões Artísticas”, o terceiro núcleo, é quase todo dedicado aos dois artistas que acompanharam o Corpo Expedicionário Português, o pintor Sousa Lopes e o fotógrafo Arnaldo Garcez. Mas abre com um quadro de Amadeo de Souza Cardoso: “Título Desconhecido (Entrada)”, óleo e colagem sobre tela, de 1917. A pintura tem vindo a ser interpretada como uma referência à entrada de Portugal na Guerra, em março de 1916. “Uma pintura emblemática do movimento Modernista português, que estava a despontar”, referiu o comissário Carlos Silveira.

Ainda neste terceiro espaço, destaca-se um desenho a carvão, de Sousa Lopes, intitulado “Retrato de Soldado Ferido no Batalhão de Infantaria 29 (Brigada do Minho)”, mais um dos inéditos agora expostos.

“Creio que é um retrato nunca antes reproduzido”, afirmou Carlos Silveira. “É talvez um dos melhores retratos de Sousa Lopes, mostra um soldado português ferido na batalha de 9 de abril de 1918, uma batalha que destroçou quase definitivamente o Corpo Expedicionário Português”, acrescentou.

Os três últimos núcleos — “Cuidar dos Vivos”, “Antagonismo e Mudanças Sociais” e “A Disputa pela Memória” — revelam o impacto social e cultural da Grande Guerra e do período seguinte. São exibidos vários artefactos, como uma prótese de braço, feita em coro e lona, ou uma caixa de madeira com materiais para amputação. As ilustrações de Jorge Barradas, a terminar a visita, simbolizam a vida lisboeta do pós-guerra, com os “night clubs” a servirem de galeria de arte e de espaço considerado de emancipação feminina.