O incêndio que provocou a morte a 64 pessoas, há duas semanas, começou em Escalos Fundeiros, Pedrógão Grande, mas os locais ouvidos pela agência Lusa rejeitam que tenha sido uma trovoada seca a atear o fogo. Quando deflagrou o incêndio, pouco depois do almoço, no dia 17, alguns residentes verificaram que algum fumo se erguia acima dos pinhais e eucaliptais, numa propriedade próxima da povoação.

Dono de uma pequena fábrica onde produz calças, em cooperação com os três filhos, o alfaiate Miguel Serrano, de 75 anos, assegura à agência Lusa que “o céu estava limpo” e que não havia trovoada quando eclodiram as labaredas.

Aqui não houve trovoada nessa altura, nada“, declara o morador, frisando que a árvore supostamente atingida por um raio, como revelou a Polícia Judiciária (PJ) na manhã do dia 18, “era uma árvore podre, caída no chão e parte dela ainda no ar”, como “acontece com outras” na mesma zona florestal, salienta Miguel Serrano.

O incêndio acabou por progredir noutras direções, nos limites do concelho de Pedrógão Grande e noutros municípios, nos distritos de Leiria, Coimbra e Castelo Branco. Segundo o artífice, “qual não foi o espanto” dos habitantes de Escalos Fundeiros, pois pouco depois do alerta já o incêndio lavrava nas encostas das redondezas, sem que os batatais, vinhas e hortas em geral, bem como um campo de mirtilo à entrada da aldeia, tenham sido destruídos.

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“Aqui, houve um reforço muito grande” de meios de combate ao fogo, “mas não o conseguiram segurar”, refere.

Vários pinhais e mesmo eucaliptais em redor também não foram atingidos e mantêm-se verdejantes, como confirmou a Lusa no local. “Alguma coisa foi”, afirma o morador, sem mencionar, no entanto, outras eventuais causas prováveis do fogo, que causou igualmente ferimentos em mais de 200 pessoas de vários concelhos. No passado, “havia quem acendesse um cigarro com uma lente”, recorda, frisando que a temperatura, naquela tarde trágica, “era de 40 e tal graus” centígrados.

Em 1991, “ainda havia resineiros” em diversos lugares serranos da região, que, sazonalmente, extraíam a seiva dos pinheiros-bravos para fins industriais e contribuíam para a vigilância da floresta. Para Miguel Serrano, “a razão por que tudo arde é que está tudo abandonado“, entre espaços florestais, antigos terrenos agrícolas e um elevado número de habitações, tendo-se agravado nas últimas décadas a tendência para a desertificação do interior encetada no século XX, antes da II Guerra Mundial.

Nos últimos 26 anos, desde que o último incêndio devastou Escalos Fundeiros, em 1991, os montes com árvores diversas estão “transformados numa selva virgem”, onde é “muito difícil” acederem as viaturas dos bombeiros. “Que haja prevenção a tempo e horas. Nesse dia, a aviação estava pronta a andar? Nada”, questiona e lamenta.

Alcinda Barata, de 71 anos, concorda que “isto foi impressionante”, pouco depois de as labaredas nascentes terem sido avistadas, junto à ribeira dos Frades. A moradora estava a descansar em casa, tentando saborear a primeira sesta deste verão, quando se apercebeu que o fogo rondava a aldeia.

Não houve trovoada àquela hora, mas sim duas horas depois“, garante também à Lusa, ao corroborar a versão do vizinho Miguel, ouvido pela PJ após o incêndio.

Alda Antunes, de 62 anos, tem duas cabras no curral a precisar de alimento, que escasseia nas terras da povoação. Para o efeito, tem recebido ajudas das entidades oficiais, designadamente algumas rações. Só que a mulher, de foice em punho, não sossega em busca de algo verde para dar aos animais.

Alcinda Barata permite que ela vá cortar plantas espontâneas que crescem agora num quintal que foi da batata temporã deste ano. “A minha vizinha é que me tem dado alguma erva para o gado”, afirma Alda Antunes à agência Lusa.

Com auxílio de uma foice longa – “foi a minha sogra que ma deu” – outrora usada pelos “ratinhos”, homens e mulheres da região que outrora demandavam à Beira Baixa, ao Alentejo e à Extremadura espanhola em busca de trabalho, na monda, na ceifa e na apanha da azeitona, a camponesa de Escalos Fundeiros colhe as pontas suculentas das videiras da amiga. Recentemente, vendeu um eucaliptal a um madeireiro da zona. As árvores foram queimadas pelo fogo, há duas semanas.

“Fiquei sem eucaliptos e sem dinheiro”, lamenta. E as causas do incêndio? “Não sei o que foi”, responde.