Há empresas que gozam de um estatuto especial e que lhes dá margem para poderem agir e tomar decisões arriscadas, que são apenas baseadas na confiança da fidelidade do seu público.

É o caso óbvio da Apple e dos sucessivos lançamentos de dispositivos, alicerçado na consciência que o seu mercado responderá a qualquer produto que lancem, e é o caso da Microsoft, onde a hegemonia dos seus sistemas operativos lhe permite tomar decisões algo questionáveis em torno de privacidade e acessibilidade.

No mercado dos videojogos temos a Blizzard, um colosso económico que vive de um estatuto quase ímpar que lhe permite, por exemplo, ser uma das poucas empresas que ainda consegue cobrar mensalmente uma subscrição por um jogo online.

Há um grande sector dos consumidores que são quase cegamente fiéis à Blizzard, mas em sua defesa temos de admitir: os “poucos” títulos em catálogo da gigante norte-americana são invariavelmente exímios (e inteligentemente cativantes) e justificam esta confiança generalizada.

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StarCraft, Warcraft, Hearthstone, Overwatch, são alguns dos jogos que tem em carteira, ao qual se adiciona um dos grandes nomes da História dos videojogos: Diablo. Se o primeiro título de 1996 foi um sucesso, o seu sucessor de 2000 tornou-se um caso paradigmático dos videojogos. Aliás, faz exatamente hoje 17 anos que Diablo II foi lançado na Europa tornando-se um sucesso instantâneo.

Dentro da sua jogabilidade e enredo simples, onde a repetição de todo o jogo era a forma descomprometida de nos manter ligados, na luta quase diária contra o cálculo das probabilidades de encontrar os itens mais valiosos que tornassem o nosso personagem progressivamente mais forte, num loop infinito que se perpetuou até ao lançamento do terceiro jogo. Ou no caso de muitos jogadores que migraram essa dedicação para Diablo III.

Como RPG de ação de fantasia medieval, em que o objetivo é simples: descer até ao Inferno e derrotar o seu regente, o infame Diablo, são as diferentes classes de personagem quem mantém a chama acesa na diversidade da jogabilidade, criando elementos emblemáticos à série.

O Necromancer foi possivelmente o mais adorado por todos os jogadores, pela capacidade que o personagem tinha de invocar um exército de esqueletos para lutar por si, num jogo (e num género) em que usualmente o protagonista é um agente solitário na luta contras as forças maléficas.

O lançamento em 2012 de Diablo III demonstrou mais uma vez a qualidade da Blizzard, demonstrando ao mesmo tempo algumas decisões criticáveis que cedo acabaram por impactar na própria empresa. A algumas companhias o seu público aceita tudo, ou quase tudo, mas existem limites.

A primeira questão centrou-se com o aparente desaparecimento do Necromancer, essa classe adorada pelos fãs e que estava ausente na versão de lançamento, mas cuja discussão foi completamente ensombrada pela Casa de Leilões a dinheiro real incorporada que o jogo possuía nos primeiros meses após o lançamento.

Parte da fidelização de mais de dez anos dos jogadores em torno de Diablo II era, como referimos, a procura por itens cada vez melhores, o que, dado o nível de investimento de horas e “trabalho” associado para os encontrar, acabou por criar um mercado negro paralelo e real, de gente que cultivava a procura destes itens para os vender por dinheiro real a outros jogadores.

Num espírito de “se não os podes vencer, tenta captar uma percentagem do negócio”, a Blizzard decidiu incorporar este sistema de venda de itens por dinheiro real no próprio jogo, o que causou grande celeuma, até à própria empresa admitir que incluir estas vendas internas no jogo estragavam o cerne do próprio Diablo. E não nos podemos esquecer que este é na sua essência um jogo relativamente curto, cuja longevidade gira em torno da repetição ad infinitum dos mesmos níveis em dificuldade crescente, com o objetivo de encontrar armas e armaduras cada vez mais valiosas.

Há três dias foi finalmente lançado o personagem que praticamente todos os fãs de Diablo queriam jogar: o Necromancer. Pomposamente apelidado de Diablo III: Rise of the Necromancer, os 15 euros que custa podem induzir-nos no erro de acharmos que vamos ter mais história jogável, ou uma pequena extensão que venha refrescar um jogo com cinco anos.

Mas não, Rise of the Necromancer limita-se a trazer o novo (e pedido) personagem para jogarmos na mesma história que jogámos e rejogámos dezenas ou centenas de vezes (dependendo do nível de dedicação) por 15 euros. É claro que a avaliação do custo de algo versus o seu conteúdo é algo bastante subjetivo, mas é um grande exemplo daquilo que o público permite ao estatuto comercial quase único que a Blizzard possui.

Pelo meio do fator cultural e lúdico, por vezes é fácil esquecermos que tudo isto é um negócio multimilionário que tem de gerar lucros. Há decisões hiper-economicistas da Blizzard que são desculpadas pela qualidade dos seus jogos e pela fidelização do público, mas que no fundo têm como justificação primoridal a maximização das margens de lucro.

Se é divertido reencontrar o Necromancer e perceber como é que ele está adaptado mecanicamente para o que Diablo é nos dias de hoje? Completamente. Mas ao mesmo tempo deixa-nos a pensar porque é que este não fez parte do jogo original ou da expansão lançada em 2014.

Mas a resposta para isso é simples: dinheiro.

Ricardo Correia, Rubber Chicken