Dezanove litros de chocolate quente, oito ovos, sete litros de chá, 45 costeletas, uma mistura de champanhe e café, cinco quilos de tapioca, dois quilos de arroz, ostras e muito vinho tinto. Se recuarmos mais de um século, o ciclismo era tudo menos coisa para meninos. Agora falamos em etapas duras, mas imagine as 24 horas de LeMans sem a parte dos carros e apenas com uma bicicleta. Pois bem, foi esse o primeiro cartão de visita de Maurice-François Garin, o primeiro vencedor do Tour, que arranca este sábado para mais uma edição, no longínquo ano de 1903.

Chamavam-lhe ‘O Louco’, pela forma como andava pelo meio da cidade. Conheciam-no como ‘O Limpa-chaminés’, porque era essa a profissão que tinha após um início atribulado de vida: nasceu em Arvier, Itália, perto da fronteira, sendo o mais velho de nove irmãos; mudou-se aos 14 anos para o outro lado dos Alpes; passou pela Bélgica; fixou-se em Lens. Por serem necessárias autorizações que nem sempre eram concedidas, andou muitas vezes clandestino, perdeu o pai e alguns irmãos, mas fez-se à vida. Quando o viram em cima de uma bicicleta, desafiaram-no para algumas provas regionais. Mas foi em Avesnes-sur-Helpes que teve a primeira grande demonstração.

Com uma bicicleta muito pesada, que tinha custado 850 francos, chegou ao local de partida mas teve logo uma contrariedade: só os profissionais poderiam arrancar na frente. Um pouco como acontece com as meias maratonas espalhadas pelo nosso país, onde primeiro saem os atletas que podem vencer a prova e só depois todos os restantes inscritos. Nem isso beliscou as intenções de Garin, que fez uma corrida de trás para a frente e conseguiu mesmo passar todos os profissionais. Como não estava nessa lista “privilegiada”, a organização recusou-se a pagar os 150 francos de prémio, mas a assistência gostou tanto do feito que fez uma coleta e juntou… 300 francos.

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As 24 horas de Paris, com tudo o que já foi supracitado, constituíram a primeira corrida como profissional. Foram muitos os participantes, mas apenas dois terminaram, com o italiano já com nacionalidade francesa a conseguir fazer 701 quilómetros, mais 49 do que o outro herói a chegar ao fim. Durante dez anos, foi participando nas principais corridas à data, com vitórias de relevo como a Paris-Roubaix ou a Paris-Brest-Paris. Mas o maior teste de todos, aquele que ninguém conhecia ainda pela novidade, estava para chegar, em 1903.

O Tour nasceu por iniciativa do novo jornal L’Auto, que queria fazer concorrência ao já existente Le Vélo. A primeira tiragem saiu bem, com uma venda total de 80.000 exemplares. Com seis etapas realizadas entre 1 e 18 de julho, com distâncias a variar entre os 268 e os 471 quilómetros, Garin conseguiu vencer com um total acumulado de mais de 94 horas, menos três do que o segundo classificado, o também francês Lucien Pothier. Para se ter ideia da violência da prova, a última etapa, entre Marselha e Toulouse, teve 471 quilómetros cumpridos em mais de 18 horas…

“Os 2.500 quilómetros que fez pareceram uma longa linha, cinzenta e monótona. Sofri na estrada: tinha fome, tinha sede, tinha sono, chorei entre Lyon e Marselha. No final fiquei orgulhoso por vencer etapas e não houve nada que me tivesse atingido particularmente. Espere, houve, estou confundido ou expliquei-me mal. A única coisa que me atingiu foi esta: olhei para mim no início do Tour como um touro picado por bandarilhas, que nunca foi capaz de tirar as bandarilhas enquanto corria“, atirou no final da prova.

No ano seguinte, numa edição bastante atribulada (além das muitas quedas, houve ataques de homens mascarados aos corredores da frente e tentativas de bloqueio de estradas em algumas zonas), Garin venceu, mas os quatro primeiros classificados acabaram todos por ver os seus resultados anulados, acusados de terem apanhado boleia de carros ou de terem sido empurrados numa decisão tomada apenas por relatos que iam sendo ouvidos de outros ciclistas e de espectadores. O castigo de dois anos, sem que nunca fosse conhecida oficialmente a acusação da União Velocipédica Francesa, acabou por ser um rude golpe para Garin, que aproveitaria os 6.000 francos recebidos em 1903 para abrir um posto de abastecimento de combustível em Lens, onde ficaria até morrer em 1957, com 85 anos.