Vários sem-abrigo da cidade de Lisboa manifestaram-se esta sexta-feira disponíveis para criar uma associação que leve aos decisores políticos as suas preocupações e revindicações, que passam prioritariamente por ter uma casa e um emprego.

A ideia de criar a associação surgiu numa tertúlia no Espaço Âncora, uma iniciativa da associação Crescer que abriu esta sexta-feira portas à comunidade para dar a conhecer o seu trabalho junto da população sem-abrigo, consumidores de substâncias psicoativas, alcoólicos, desempregados e migrantes.

Durante três horas, sem-abrigo, psicólogos e técnicos de instituições que trabalham junto desta população debateram os problemas vividos diariamente nas ruas e nos albergues da cidade e os anseios que partilham.

A abrir o debate, Carla, 43 anos, questionou “porque é que há tanta casa fechada em Lisboa e tanta gente a viver em albergues, que estão cheios”. Para Carla, que vive há vários anos numa instituição, deviam ser “dadas mais oportunidades a pessoas que vivem em albergues”, onde muitas vezes são “maltratadas e ofendidas”.

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Somos a cara de milhares de pessoas que têm dificuldades e não têm um sítio certo para morar. Nós somos o resto do mundo para a sociedade”, lamentou.

Pegando nas palavras de Carla, Leandra, 29 anos, disse que apenas pede “um trabalho digno e uma casa”. “Só pedimos necessidades básicas, como seres humanos precisamos disso”, disse Leandra, que vive num albergue em Lisboa. “Vivemos num mundo injusto”, acrescentou, por seu turno, Edna, uma jovem em situação de sem-abrigo, que encontrou no Espaço Âncora amigos, apoio e carinho.

Edna tem tentado arranjar emprego, mas confessou que tem sido difícil e as ajudas são muito poucas. “Nós pedimos ajuda para o passe e a resposta que dos dão é que ‘estão no centro de Lisboa andem a pé'”, exemplificou, com a voz embargada.

Estes problemas foram ouvidos atentamente pelos técnicos, que lhes lançaram um desafio: constituírem uma associação para fazer chegar a sua voz aos decisores políticos. “Devem formar uma associação e fazerem-se representar no NPISA (Núcleo de Planeamento e Implementação Sem-Abrigo) de Lisboa”, sugeriu uma técnica, aconselhando: “Temos que saber protestar, mas também temos que apresentar soluções”.

O desafio foi logo aceite por Carla: “Achei muito importante esta ideia e já me ofereci para porta-voz porque a nossa voz tem de chegar longe”, disse à Lusa no final da iniciativa.”Há muita coisa que está por debaixo do pano e quando tentamos fazer algum tipo de reclamação somos convidados no outro dia a sair do albergue onde estamos”, adiantou.

“Isto é muito mau porque nem sequer podemos queixar-nos e não temos apoio de parte nenhuma”, sustentou Carla, que luta há vários anos para sair da instituição onde vive, o que se tem revelado difícil devido à dificuldade em arranjar emprego.

Sei fazer um pouco de tudo mas a barreira da idade não ajuda. Infelizmente não está fácil e neste momento estou sem qualquer tipo de rendimento”, lamentou.

Para o diretor da associação Crescer, Américo Nave, a criação de uma associação é um “excelente desafio”. “É muito importante que estas pessoas tenham uma voz ativa nas políticas que vão mudar a vida deles”, defendeu à Lusa.

Américo Nave sublinhou que muitas vezes se tomam decisões e criam novos projetos para a cidade, mas “as pessoas que vivem os verdadeiros problemas diariamente não são ouvidos”. Sobre o desejo expresso por estas pessoas de ter uma casa, disse que é um direito fundamental para melhorarem a sua vida.

“É fundamental, terem uma casa e estarem verdadeiramente incluídos na comunidade”, disse o diretor da Crescer, associação que já retirou 22 pessoas sem-abrigo das ruas de Lisboa nos últimos quatro anos e lhes deu uma casa, através do projeto “Casa Primeiro”, apoiado pela Câmara de Lisboa.