O Estado da Nação é um estado com duas versões. Cara ou coroa. A cara, do Governo, é esta: afinal havia alternativa à austeridade dentro do cumprimento das regras europeias, que permite uma política de devolução de rendimentos e direitos e, ao mesmo tempo, permite o melhor défice da história. A coroa, do PSD de Passos Coelho, é outra: o Governo só conseguiu cumprir as metas orçamentais porque adotou uma nova forma de austeridade, escondida nas cativações e na falta de investimento. Uma espécie de “plano B” ocultada no armário. Mais crítica, menos exigência, o debate do Estado da Nação — que marca o fim da sessão legislativa e que costuma ser um debate aceso de balanço do ano — girou em torno destas duas versões da mesma história.

Para afastar os temas recentes que fizeram mergulhar o Governo numa crise política, António Costa levou na manga a notícia de que iria apresentar já amanhã ao Presidente da República os nomes dos próximos secretários de Estado. A mini-remodelação, a que chamou de “ajustamento governativo”, vai passar ainda pela criação de uma nova secretaria de Estado, da Habitação, que será integrada no Ministério do Ambiente. Mas PSD e CDS não deixaram o tema passar em branco, acusando o Estado de ter “colapsado”, de ser um “flop” e uma “fraude”. O ministro da Saúde foi defender o Governo das balas sobre as cativações e a suposta falta de investimento nos serviços do Estado, enquanto Augusto Santos Silva deu a cara pelas questões de Defesa nacional, relacionadas com o assalto a Tancos. Sobre isso, Costa não pronunciou uma palavra.

Já quanto aos partidos da esquerda, já só pensam no Orçamento do Estado para 2018, e fazem os seus apelos e exigências.

Costa: “Obviamente não demito nenhum ministro”

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Eis os principais pontos do debate desta tarde de quarta-feira, que teve nada menos do que 226 minutos, o equivalente a quatro horas:

Pedrógão, Tancos, Galpgate: os temas obrigatórios

O colapso do Estado e o “Governo maravilha” desorientado. O debate seria de balanço, mas já se sabia que não podia ser “só” isso. As três crises do momento não faltaram no hemiciclo. Sobre a tragédia de Pedrógão Grande e o assalto a Tancos, Passos Coelho e Luís Montenegro atacaram o “processo de degradação indisfarçável” em que o Governo está a mergulhar que, dizem, evidencia um “colapso” das funções do Estado e do Governo, que “perde autoridade todos os dias”. Um “colapso” que se vê não só nos fogos, nem só na Defesa, mas também no caso das viagens dos secretários de Estado ao Euro pagas pela Galp — que o Governo tentou arrumar há um ano, “sem tirar consequências”, e que agora volta sob a forma de processo judicial. Passos resumiu assim: basta “uma série de eventos imprevistos” para que o “Governo maravilha e a maioria estável, duradoura e coerente acabem a mostrar toda a sua insuficiência e deem sinal de enorme desorientação e desarticulação”. O CDS seguiu a mesma linha, com Telmo Correia a apontar o dedo ao “lamentável Estado da Governação”. A oposição ganhou novo fôlego, mas, até ver, as críticas vão ser apenas críticas, sem moções de censura ou atos políticos de maior.

O dia que nunca se esquece. Costa falou da tragédia do incêndio de Pedrógão Grande, dizendo que “nunca mais nenhum de nós poderá esquecer aquele dia”, e apontando para os trabalhos de reconstrução e prevenção que têm de ser feitos. Ignorou Tancos, que ficou para o discurso de encerramento para Santos Silva, número dois e ministro dos Negócios Estrangeiros, que fez a defesa do Governo: houve “sofreguidão no aproveitamento político” da direita no caso do assalto à base de Tancos, afirmou, dizendo que e “soou a falso a ladainha da oposição sobre a suposta degradação do Estado”. Sobre o Galpgate, nada. A não ser o primeiro-ministro a anunciar a mini-remodelação dos três secretários demissionários.

Não há demissões dos ministros. “Obviamente não demito nenhum ministro”, foi assim que António Costa respondeu a mais uma intervenção de Assunção Cristas a pedir a demissão dos ministros da Defesa e da Administração Interna, na sequência dos casos de Tancos e Pedrógão. Cristas insistiu que se Costa não o fizer então a responsabilidade política sobre as “falhas” nestas duas pastas será sua — “e apenas sua” — mas Costa não virou a cara: “Tudo o que os ministros fizerem é sempre responsabilidade minha”.

Cativações. Aquela cativa (encoberta) que me tem cativo

Flop, fraude, pirueta, plano B e austeridade escondida. Tudo sinónimos do mesmo argumento, usado pelo PSD e pelo CDS: o Governo que diz que aumenta o orçamento dos serviços e que a austeridade acabou, faz aprovar orçamentos com mais despesa para os ministérios, mas depois impede os serviços de gastarem esse aumento, sendo que em alguns casos, até se gasta menos do que se gastava. Passos Coelho centrou a sua intervenção nesse “plano B” escondido que fez o Governo vender gato por lebre aos parceiros parlamentares e, ao mesmo tempo, satisfazer Bruxelas com metas cumpridas. Também o CDS alinhou no mesmo discurso, chamando-lhe “austeridade encapotada”. Telmo Correia atirou à “conivência silenciosa dos partidos que apoiam o Governo” que “aprovam em novembro e denunciam em julho”, numa referência às cativações que estavam subentendidas no OE mas que só aparecem reveladas preto no branco no relatório da Conta Geral do Estado: “Um truque que foi descoberto”.

BE e PCP: uma pitada contra cativações. A questão dos cativos e da despesa que estava prevista no OE para ser gasta nos vários serviços públicos e que acabou por não ser gasta (num valor recorde) também incomodou a esquerda, que receia que as cativações estejam a ser usadas para cumprir metas do défice prejudicando com isso o investimento nos serviços do Estado. “É preciso que os Orçamentos do Estado que são aprovados na AR sejam executados” e que não sirvam só “para apresentar serviço a Bruxelas”, disse Jerónimo de Sousa (levando até Passos Coelho, mais à frente a dizer que até o PCP concorda). Também Catarina Martins se queixou: “Há uma diferença de 1.600 milhões de euros entre o défice necessário para sair da lista dos défices excessivos e o défice registado efetivamente. Para que o ministro Mário Centeno fosse elogiado por Schauble houve 1.600milhões de euros a menos de investimento onde era urgente fazê-lo”, disse, apelidando esse dinheiro de poupanças “forçadas e escusadas”, e “uma oportunidade perdida”.

As cativações de memória. A defesa do Governo coube a Santos Silva e Adalberto Campos Fernandes, ministro da Saúde. O último, começou por garantir que não há nem houve cativações no Serviço Nacional de Saúde, e atirou à oposição PSD/CDS: “As únicas cativações que conhecemos são as cativações de memória da oposição, que se esqueceu do que fez de 2011 a 2015”. Também Santos Silva alinhou no mesmo tom. Citou Camões: “Aquela cativa que me tem cativo/Porque nela vivo/ Já não quer que viva”. E recomendou à direita que mude de discurso, porque o das cativações não pega: “O país precisa de uma oposição viva. Queremos oposição bem viva e de boa saúde”.

Saúde. O reforço do INEM e a inexistência das cativações (que existem)

Cativações não afetam saúde. António Costa ainda estava nas primeiras linhas da sua intervenção de abertura do debate e já pré-anunciava “novidades” na Saúde – caberia ao ministro concretizar quais – para que o Serviço Nacional de Saúde “responda cada vez melhor às necessidades e expectativas dos cidadãos”. Pelo meio, uma garantia do primeiro-ministro: as cativações não afetam áreas de “essenciais”, como é o caso da Saúde, onde até se prevê um “reforço do investimento”, a par da Educação.

Houve cativações na Saúde, como acusa o PSD?

Mais meios para o INEM e médicos para todos. Adalberto Campos Fernandes, a quem coube fazer uma das intervenções de fundo em nome do Governo, acabaria por anunciar um reforço de meios do INEM (ao ponto de o organismo ficar com o maior efetivo de sempre) e uma “renovação total de frota”, possibilitando uma resposta em todos os concelhos do país. O ministro também garantiu – em resposta às perguntas da esquerda parlamentar – que, apesar de não ter cumprido a promessa até ao final desta sessão legislativa, no final da legislatura estará assegurada a “cobertura total” de cidadãos com médico de família atribuído.

Está tudo bem, despesa até cresce, diz ministro. Campos Fernandes aproveitou para passar em revista o trabalho feito em ano e meio de Governo: taxas moderadoras reduzidas, lei do tabaco mais apertada, proibição da venda de alimentos prejudiciais nas máquinas de vending, apoios à fixação de médicos no interior e a integração de mais quatro mil médicos desde o final de 2015, alguns milhares de enfermeiros e outros profissionais de saúde. Com um passo em falso: quando disse que era a primeira vez em vários anos que a despesa no setor crescia, o ministro faltou à verdade.

Está mesmo tudo bem? PSD, CDS e… esquerda não compram. À esquerda houve exigências para aumentos na contratação de pessoal médicos. O PCP disse mesmo que os profissionais de saúde estavam “exaustos” para acentuar a necessidade de aumentar a contratação, mas o momento mais quente do debate com Campos Fernandes aconteceu na troca de argumentos com os deputados Miguel Santos (PSD) e Isabel Galriça Neto (CDS) – precisamente sobre o impacto das cativações no setor da saúde, apesar das garantias já expressas por António Costa. O ministro antecipou as críticas com a ideia de que a direita já perdeu memória das cativações que fez enquanto esteve no Governo.

Altice/PT. Esquerda e Governo unidos contra empresa de telecomunicações

O “receio” pela PT, que pode ser uma nova Cimpor, e o ataque duro à Altice. O Governo foi confrontado com a situação na PT – depois de o presidente da empresa ter dito no Parlamento que os despedimentos são para “continuar” – pelos protagonistas parlamentares à esquerda do PS. Mas Costa já tinha uma mensagem em mente. Um dia depois de Paulo Neves dizer aos deputados que a empresa que dirige tem “mais do dobro dos trabalhadores” que a concorrência, o primeiro-ministro aproveitou o palco do debate sobre o Estado da Nação para tomar posição sobre o processo: “Receio bastante pelo que possa acontecer à PT, pela forma irresponsável como foi feita a privatização, que possa ser um novo caso da Cimpor. E que isso possa pôr em causa quer os postos de trabalho quer o futuro da companhia”, disse em resposta a um pedido de Catarina Martins (BE) para que o Governo intervenha no processo de despedimentos em curso.

Qual é a operadora de Costa? PT não é certamente. Costa continuou no ataque à Altice, apontando mesmo o dedo às falhas de rede que houve em Pedrógão e dizendo que usa outra operadora. “Era bom que a autoridade reguladora visse o que aconteceu, desde logo no caso de Pedrógão Grande: onde algumas operadoras conseguiram manter sempre comunicações, outras não. Olhe, eu por mim já fiz a minha escolha da companhia que utilizo”, disse, sem revelar a rede que usa no seu telemóvel.

Coragem para combater interesses e chantagens. Antes, a coordenadora do BE já tinha criticado a Altice, por estar a preparar, na PT, “o despedimento de milhares de trabalhadores fintando todas as regras e gabando-se disso mesmo até no Parlamento”. “Enquanto o Governo adia a reversão da selva laboral instalada pelo anterior Governo, os abutres experimentam novos abusos”, disse Catarina Martins, que pediu “coragem” dos responsáveis políticos “contra interesses poderosos”. O PCP também insistiu no dossier PT/Altice, ao questionar António Costa sobre a intervenção que admite fazer no processo de despedimentos da empresa e denunciado os “processos de intimidação e chantagem” sobre os trabalhadores.

As exigências da esquerda: IRS, Salário mínimo, carreiras e leis laborais:

Mudar. Não basta ir mais rápido. “É preciso mudar mesmo. Mudar a política. Mudar e não apenas incorporar variantes mantendo o essencial das soluções do passado. Mudar e não insistir na vã e ilusória tentativa de redesenhar a impossível quadratura do círculo da compatibilização do país com a submissão ao capital monopolista, aos juros da dívida, ao euro e às imposições da UE”. Jerónimo de Sousa endureceu o discurso habitual para o Governo e o PS. O Orçamento do Estado para 2018 aproxima-se e os temas são incontornáveis: mais escalões no IRS, aumento do salário mínimo, descongelamento de carreiras, reversão das alterações ao Código do Trabalho. Tudo temas que PCP e BE pediram repetidamente no debate.

Não há cheques em branco. Do lado do BE houve as mesmas exigências, com pedidos de garantia a Costa para cumprir o que lhes tem prometido. E avisou: não haverá cheques em branco. “Não nos resignamos aos hábitos da política velha que persistem, não deixamos de lutar pelo que falta fazer, e falta quase tudo, nem passamos cheques em branco”. Ao BE não caíram bem os elogios feitos pelo ministro das Finanças alemão a Mário Centeno, que não usou a folga orçamental para investir em serviços importantes à custa de fazer um brilharete no défice.

Verdes exigem reforma da floresta. Do lado dos Verdes ficou ainda mais uma exigência: que a reforma das florestas se faça já e com eficiência. Essa será, segundo Heloísa Apolónia, a garantia de que a tragédia de Pedrógão Grande não volta a acontecer.