Vai do mau ao meio-termo, o estado das relações políticas que foi possível medir no Estado da Nação, o debate parlamentar que fecha a sessão legislativa. Ao fim e quase dois anos de existência, e no segundo debate do género por que passou, o Governo mantém a tensão altíssima com PSD e CDS. E uma relação controlada, em alguns momentos até mole, com os parceiros da esquerda. A paixão inicial — que nasceu da comunhão no desprezo pela direita — já não é cega, ainda que continue a ser suficiente para segurar o casamento.

Tanto o Bloco de Esquerda como o PCP deixaram exigências ao Governo, mas não tiveram mais do que um “sim, sim” despachado na resposta do primeiro-ministro. Até insistiram nos vários temas, e sobretudo quando falou o ministro da Saúde, para pedirem investimento no Serviço Nacional de Saúde, mas o tom é brando, num vai-se andando que só saí disso quando o alvo é a direita. Aí a crítica toma forma digna desse nome. Já do outro lado do hemiciclo, a história da relação com o Governo é outra e os dois principais líderes, do PS e PSD, até voltaram a evitar o confronto direto.

Costa: “Obviamente não demito nenhum ministro”

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Complicado. O “colapso” entre o Governo e oposição

O trato entre Governo e PSD não está aos níveis baixíssimos de abril, tanto que Passos e Costa têm evitado, desde então, confrontos diretos, o que fizeram neste debate. Mas a relação continua a ser a mesma: difícil e sem pontos de contacto. Aliás, durante este debate, a tensão teve o seu auge no momento Passos/Galamba, mas já vinha bem embalada das picardias Montenegro/Costa. Na bancada ao lado, no CDS, também foi possível avaliar as dificuldades de relacionamento pelo confronto Cristas/Costa e, mais ainda, quando no ataque César/Cristas.

Por partes, ou por duelos.

Montenegro/Costa: Depois de António Costa abrir o debate, o PSD entrou direto ao ataque, com uma avaliação dura do Estado da Nação, descrevendo o “colapso do Estado”. O líder parlamentar Luís Montenegro juntou tudo no mesmo saco para chegar a esta mesma conclusão sobre a ação do Governo.

  1. Em Pedrógão Grande o “Estado colapsou” quando “não conseguiu salvar” as pessoas que morreram no incêndio, “quando o seu SIRESP [dirigindo-se a Costa], de que é autor” falhou “o Estado colapsou”;
  2. No roubo de Tancos criticou o ministro Santos Silva por dizer “uma coisa e o seu contrário: não afetava a imagem do país” e depois já tinha “custo reputacional”, e também Costa, que “assumiu a gravidade da situação” e depois “relativizou o assunto, afetando a dignidade das Forças Armadas”,
  3. Atirou-se à falta de “consequências políticas” há um ano quando três secretários de Estado viajaram pagos pela Galp [o próprio Montenegro chegou a desmentir ter ido ver a final do Euro2016 pago pela Cosmos, por isso aqui ouviu protestos do PS];
  4. A fuga de informação no exame nacional de português;
  5. As contratações públicas em que o “mérito foi substituído pelo amiguismo”

Uma diversidade de temas que levou António Costa a responder assim, por atacado: “Senhor deputado, aquilo a que aqui assistimos não foi à descrição de colapso do Estado, foi ao colapso do sentido de Estado do PPD/PSD”. Depois disse, em sua defesa, que “a política não é para os dias fáceis” e logo ouviu um subir de apartes da direita sobre a sua ausência em férias, depois do assalto a Tancos. Continuou, entre os protestos: “Nos dias difíceis, devemos saber resistir à tentação de, à força de não querermos que a culpa morra solteira, arranjar um casamento de conveniência com a desculpa que não arranjámos marido adequado”.

A resposta de Costa tinha começado com uma picardia partidária, com o socialista a congeminar ali perante todos sobre o futuro do PSD. Ao líder parlamentar que está de saída, o primeiro-ministro disse: “Não sei se no próximo debate [do Estado da Nação, daqui a um ano] não o vou ter como interlocutor noutra qualidade”. Neste dia, o líder era mesmo Passos Coelho que se levantou pouco depois para ir até ao púlpito e ler um longo discurso onde também passou em revista todos os casos dos últimos tempos, mas dedicou boa parte do tempo às cativações.

Passos/Galamba: Passos acusou o Governo de, “quando percebeu que a estratégia económica não tinha os resultados que esperava”, ter posto “em marcha um plano B, que nunca teve coragem de assumir e que repetidas vezes negou”. As cativações. Ao assumir a intervenção do púlpito e deixando para Montenegro as primeiras perguntas a Costa, acabou por acabar num debate direto com o socialista João Galamba, que foi quem lhe respondeu na bancada do PS. “O que as cativações fizeram foi anular o crescimento da despesa”. E pediu a Passos para pedir desculpa por, há um ano, ter falhado nas suas previsões.

Passos subiu os decibéis para dizer que quem tinha de ficar “um bocadinho embaraçado” era Galamba “porque aprovou um OE a prometer conciliar os objetivos orçamentais com o aumento da despesa, mas não foi isso que aconteceu, foi o contrário”. Depois pôs o dedo na ferida entre os parceiros de esquerda: “Até o BE deu conta disso, até os Verdes deram conta disso, e o senhor deputado não?”. E deu por concluído o duelo chamando às cativações uma “fraude democrática”.

Cristas/Costa e César/Cristas: Assunção Cristas marcou o debate sobretudo quando pediu a Costa para dizer se demitia ou não a ministra da Administração Interna. A resposta do primeiro-ministro foi clara: “Obviamente não demito nenhum ministro, nem a ministra da Administração Interna e nem o da Defesa”. Mas o ataque maior veio no sentindo contrário. Primeiro foi António Costa a lembrar os cartazes mostrados por Cristas há um ano sobre o desempenho da economia: “A realidade desmentiu cada um dos cartazes”. Já no final do debate, Carlos César havia de aproveitar esta memória do Estado da Nação para desmontar os números de cada cartaz e concluir: “1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 cartazes do CDS para o Ecoponto!”.

Vai-se andando à esquerda. Bater na direita e pedir ao Governo

Uma na rosa, três na laranja. A intervenção da esquerda ao longo do ano parlamentar tem sido feita com base nesta dosagem: uma exigências ao PS, três ataques à governação PSD/CDS. O debate desta quarta-feira não fugiu muito a este registo.

Catarina/Costa: Não foi certamente duelo, nem sequer um confronto. O Bloco de Esquerda, pela voz de Catarina Martins, começou por pedir três garantias:

  1. Que em janeiro de 2018 o salário mínimo nacional seja de 580 euros, como consta do programa de governo;
  2. Reversão das alterações laborais impostas nos tempos da troika que facilitaram despedimentos. Porque não se pára o empobrecimento do país sem reconstruir direitos do trabalho.
  3. Aumento da progressividade do IRS. Repor a progressividade dos escalões de impostos, para repor rendimentos e repor justiça.

Costa respondeu de raspão e, mais tarde, com um sim mais ou menos genérico. Prometendo mexer nos escalões, mas continuando sem dizer como, por exemplo. Depois, Joana Mortágua quis saber sobre os vínculos aos professores. “Centenas de professores estão hoje com o coração nas mãos e a vida pendurada”, disse, pedindo ao primeiro-ministro que anunciasse que vai duplicar, triplicar as vagas. Não ouviu resposta. O único bloquista que ainda recebeu uma promessa concreta foi José Soeiro que pediu a Costa para ser dada uma ordem aos dirigentes dos organismos públicos para que identifiquem obrigatoriamente os precários no Estado. Costa acabou por dizer que ia fazer um despacho nesse sentido.

Mas desta bancada ainda ouviu críticas ao uso de cativações, com Catarina Martins que lhes chamou “poupanças escusadas e forçadas”. Isto apesar de dizer que “um ano depois do último debate, a resposta às pessoas provou-se uma resposta à economia: crescimento económico, criação de emprego, um país com mais confiança”. Mas prometeu questionar por que os objetivos do défice foram “além do previsto e que podem tornar-se um obstáculo à própria consolidação”.

Jerónimo/Costa: No mesmo sentido que a bancada do lado, o líder comunista reconheceu que os dados mais recentes sobre a situação económica e social são a prova do “falhanço da política de direita de empobrecimento dos trabalhadores e de cortes nas condições de vida do povo”. Mas logo a seguir avisou: “É preciso mudar mesmo”, “mudar de política”. E os recados de Jerónimo de Sousa não ficaram por aqui, com o comunista a pedir que “os Orçamentos do Estado que são aprovados na Assembleia da República sejam executados”. Uma forma de dizer que as cativações e poupanças forçadas não refletem o que o seu partido aprovou.

Mesmo que António Costa a seguir prometesse que na Saúde não houve cativos, Jerónimo já tinha deixado o descontentamento: “Sabemos que o que está feito não é suficiente, e não é só uma questão de ritmo, é preciso ir mais longe e romper com a política que durante décadas vigorou no país e assumindo com coragem a política alternativa”. Avisos que não foram mais do que um resumo do que o PCP já tem feito saber nos últimos meses, nesta ameaça/desafio permanente que os comunistas já sabem ter um limite do outro lado, onde Costa repete — como voltou a fazer neste debate — que já se sabe, têm aqui um diferendo: O PS não rompe com a União Europeia. E nesta assunção de divergências estruturais vai seguindo este equilíbrio de forças.