Nome: O Casamento
Autor: Nelson Rodrigues
Editora: Tinta-da-China
Páginas: 328
Preço: 19,91€

“Eu não digo que toda a mulher gosta de apanhar. Só as normais. As neuróticas reagem.” “Nenhuma mulher trai por amor ou desamor. O que há é o apelo milenar, a nostalgia da prostituta que existe na mais pura.”

Em mais do que uma entrevista, Nelson Rodrigues repetiu estas ideias por estas ou outras palavras, o que levou a que, naturalmente, o escritor brasileiro fosse acusado de misoginia. No entanto, ao lermos O Casamento, percebemos que talvez haja uma outra maneira de olharmos para frases como estas. Nelson Rodrigues parece fazer sempre da sua ficção um palco onde expunha os seus pensamentos sobre o mundo, pensamentos esses que nunca se coibia de revelar de forma bruta e violenta sempre que lhe colocavam um gravador à frente. Assim, falar d’O Casamento implicará forçosamente revisitar algumas das frases fortes que encontramos nas entrevistas do escritor.

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Na última entrevista do escritor, dada poucos dias antes da sua morte, ao jornal mineiro O Opiniático, Nelson Rodrigues apresenta três ideias que o próprio não hesitaria em classificar de reacionárias, mas que nos permitem perceber melhor o que se passa no romance agora publicado pela Tinta-da-China. Diz Nelson Rodrigues que “o ser humano só se salvará se, ao passar a mão no rosto, reconhecer a sua própria hediondez”; que “o ‘homem de bem’ é um cadáver mal informado. Não sabe que morreu” e que “só um débil mental pode casar-se na presunção de que o casamento é divertido, variado, ou simplesmente tolerável. É divertido como um túmulo. O casamento é o máximo da solidão com a mínima privacidade. Só o cinismo redime um casamento”. Se juntarmos a estas afirmações as frases que abrem este artigo, talvez estejamos em condições de compreender o único romance em nome próprio do escritor brasileiro.

O Casamento conta as vinte e quatro horas que antecedem o casamento de Glorinha, a filha mais nova do empresário Sabino Uchoa Maranhão. Logo na primeira página, Sabino ouve alguém na rua dizer “todo canalha é magro”. Ao ouvir isto, e sendo Sabino magro, somos informados de que “com surda cólera, Sabino pensa, como alguém que se justifica ou se absolve: ‘Eu não sou canalha.’ Não se ia esquecer nunca mais da cara do sujeito e do seu riso” (página 9). Este episódio insignificante resume o resto do livro. Sabino, tal como todas as outras personagens, procura desesperadamente conservar uma aparência polida e calar as vozes na sua cabeça que o acusam.

As personagens do romance combatem a revelação de que existe uma diferença entre público e privado, entre fachada e realidade, entre o que são e o que aparentam ser. É por isso que o casamento de Glorinha não pode, por motivo nenhum, ser colocado em causa. Nas vinte e quatro horas da narrativa, encontraremos dezenas de acontecimentos que colocariam em causa o casamento que se prepara. Ao longo das páginas do romance, vão-se acumulando revelações da perversão da família Maranhão, uma família de violadores e incestuosos bem-parecidos onde, entre muitos outros exemplos monstruosos, a mãe cheira as cuecas menstruadas da filha. No entanto, nem a mais grotesca das revelações coloca em causa o casamento iminente, uma vez que o casamento, mais do que a promessa de fidelidade e amor eterno dos noivos, parece representar a possibilidade de Sabino usar casaca pela primeira vez.

As personagens de Nelson Rodrigues falam como se fossem arautos da moral, como se fossem profetas. Não profetas de longas barbas e roupas rasgadas, não profetas que se alimentem de gafanhotos, mas “como se o profeta, inédito, pudesse estar ali, comendo salgadinho” (página 15). No entanto, diante da quantidade de revelações trazidas pela proximidade do casamento, a ideia de que se é aquilo que se aparenta começa gradualmente a cair. Gradualmente, Sabino percebe que o casamento não é a possibilidade de uma relação com alguém que nos beije os pés, mas o juntar das chagas de dois leprosos. O casamento deixa de ser um acontecimento “divertido, variável ou simplesmente tolerável”, para se tornar no reconhecimento e aceitação da nossa própria hediondez, sendo sempre as personagens com nomes ou cargos religiosos (Téofilo, Glorinha e o Monsenhor Bernardo) que permitem a Sabino e a todos os demais esta descoberta.

Nelson Rodrigues divide as suas personagens em dois grandes grupos: os adultos leprosos e os jovens epilépticos. Os adultos apodrecem lentamente, os seios das mulheres desfazem-se e os homens, tomados pelo cio, coçam infinitamente as suas chagas na impossibilidade de se satisfazerem de outra forma (“E, então, [doutor Camarinha] desesperado de volúpia, coçou com os dez dedos as brotoejas da cabeça” (página 115); “[Xavier] desceu a pé, rente à parede, raspando a parede, os dez andares” (página 104)). Por outro lado, os jovens, também eles governados pelo cio, têm como única ambição sofrer um ataque epiléptico tão violento que até a cor dos seus olhos mude e que os leve para longe dali (“O que eu acho é que um dia vou ter um ataque assim. Vocês vão ver eu cair de gatinhas e de olho azul. Um azul que nunca ninguém viu, nunca”(página 144)). Em alternativa, não se importariam de, a alta velocidade, “[enfiarem] os cornos dentro dum poste” (p.110).

Apesar do pessimismo misantropo de Nelson Rodrigues, existe uma possibilidade de salvação que consiste na articulação da ideia de uma salvação pela hediondez com a sugestão de que o ‘homem de bem’ é um cadáver mal informado. Apesar de o escritor acreditar sinceramente que “se cada um conhecesse a intimidade sexual dos outros, ninguém falaria com ninguém” (página 225), parece haver uma oportunidade de redenção. Esta redenção não surgirá, no entanto, num comportamento beatífico e exemplar.

Meia hora antes de morrer, o pai de Sabino pede-lhe que seja sempre um homem de bem. Ao longo da vida, particularmente nos momentos em que as suas acções mais o desmentiriam, Sabino vai repetir “umas quinhentas vezes que é um ‘homem de bem’” (página 37). Para Nelson Rodrigues, Sabino poderá salvar-se apenas quando reconhecer que nunca conseguirá ser esse homem de bem, deixando então de se identificar como tal. A salvação não está, portanto, numa mudança de comportamentos que se adeque à aparência pura e nobre de Sabino, mas antes numa mudança radical desta aparência. Sabino só se salvará quando, como faz o doutor Camarinha na noite da morte do seu filho, irromper numa sala a gritar: “Diz a todo o mundo, diz, que eu sou um filho da puta da pior espécie” (página 206). Sabino só encontrará alguma paz quando perceber que o homem que lhe pedira para ser sempre, acima de tudo, um ‘homem de bem’ morrera e que, mais importante do que isso, essa morte chegara enquanto defecava, continuando o pai de Sabino a defecar já depois de morto. Só quando reconhecer que é pó e que ao pó regressará é que Sabino perceberá porque que só é capaz de se recordar com amor do seu próprio pai quando se lembra dele “no momento das fezes” (página 21).

Dito isto, talvez agora se compreenda melhor o que quereria dizer Nelson Rodrigues quando falava do prazer que as mulheres sentiam ao serem violentadas e da nostalgia de prostituta que até a mais pura de entre elas sente. Mais do que misoginia, Nelson Rodrigues está com isto a sugerir que os homens (e, neste caso específico, as mulheres), ao procurarem iludir-se uns aos outros acerca da sua virtude, varrem para debaixo do tapete a sua inescapável podridão. Ao fazê-lo, alimentam uma perversão que se revelará de forma absolutamente grotesca mais cedo ou mais tarde. Por isso, e não necessariamente por uma eventual misoginia, Nelson Rodrigues conclui que “a prostituta só enlouquece excepcionalmente. A mulher honesta, sim, é que, devorada pelos próprios escrúpulos, está sempre no limite, na implacável fronteira”.

João Pedro Vala é aluno de doutoramento do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa.