E esta saudosa casa, onde brilhou
Tua voz num instante sempiterno
(Teixeira de Pascoaes, “Ausência”)

Os amarantinos foram os primeiros a saber que a saudosa casa situada no centro da cidade, o Grande Hotel Silva, ia voltar a ter vida. Alguns iam entrando, para contar que foi ali, naquele que foi o primeiro e único hotel de Amarante durante pelo menos 40 anos, que os pais, os tios ou um irmão, se casaram. “Nas nossas pesquisas ficamos a saber que o Grande Hotel Silva já existia em 1902”, conta Francisca Fonseca, que com os irmãos Rita e Álvaro, e o marido Roberto Feitosa, acaba de abrir aquelas mesmas portas aos turistas que cada vez chegam em maior número a Amarante. Chamaram-lhe Des Arts – Hostel & Suites e encheram-no de referências artísticas. Ou não fossem Francisca, Rita e Álvaro sobrinhos-bisnetos do poeta Teixeira de Pascoaes.

O edifício de cinco andares sempre pertenceu à família, mas foi entrando em decadência até ser despromovido a Albergaria Dona Margarita. Fechou em 2007 e assim ficou, abandonado, durante alguns anos. Francisca Fonseca e o marido eram ambos produtores do festival Rock in Rio e estavam a viajar pelo Brasil quando ela recebeu um telefonema do pai, a desafiá-la para recuperar o espaço e criar ali quartos para o turismo crescente na cidade.

Aceitou, mudou-se para a terra onde nasceu e convenceu os irmãos — ambos a viverem no Brasil — a ajudá-la, transformando a recuperação num projeto local e familiar. Janelas, mesas, cadeiras, camas, quase tudo foi recuperado à mão. O projeto arquitetónico é do amarantino João Abreu e as informações no interior do hotel foram também criadas por um artista local, Boni Oso, porque desde logo o objetivo ficou traçado: a família de artistas ia trazer a arte a cada canto do hostel.

A abertura fez-se no início de julho. Logo à entrada do edifício, todo pintado de branco e azul, há uma parede com recortes e anúncios antigos ao Grande Hotel Silva, “recomendado pela Propaganda de Portugal”, pode ler-se num recorte de jornal do tempo da ditadura. E com “Auto-Garagem”, vangloriavam-se. Hoje, o Des Arts não tem garagem, porque há um parque de estacionamento gratuito mais abaixo. Tem, sim, 15 suites e camaratas de duas, quatro, seis, oito, 10 e 12 pessoas, num total de 48 camas. Na época de verão, os preços das camaratas variam entre os 18€ e os 24€ por pessoa. Já as suites, mais privadas, começam nos 55€ por quarto e vão até aos 86€ da suite twin superior. O pequeno-almoço está incluído.

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À esquerda, o Grande Hotel Silva, nos anos 1920. À direita, o novo Des Arts – Hostel & Suites, cujas portas abriram este mês.

A disposição dos andares faz lembrar a do Titanic: suites nos andares mais elevados, camaratas em baixo. Quase todos os quartos têm o nome de um pintor ou de um escritor, alguns deles de Amarante. António Carneiro, Agustina Bessa-Luís, D’Assumpção, Sophia de Mello Breyner, Raúl Brandão. As suites dos escritores têm mesinhas de cabeceira originais, em formato de livro. As dos pintores fazem lembrar paletas. Foi a avó Amélia, que durante quase toda a vida cuidou da Casa de Pascoaes, herdada pelo marido João Vasconcelos (Teixeira de Pascoaes não teve filhos, João era um dos sobrinhos) quem ajudou a organizar os batismos dos quartos. “Ela ia dizendo: este não pode ficar ao lado deste porque não se davam bem, estes podem ficar um ao lado do outro”, recorda Francisca.

As melhores suites são as de Teixeira de Pascoaes e Amadeo de Souza-Cardoso, o pintor modernista também de Amarante. A avó colocou os nomes dos dois amigos lado a lado, como tinha de ser. E ambos dão acesso a um pequeno jardim privativo, com o desenho no chão de uma das violas que Amadeo pintou, antes de morrer precocemente, em 1918. Pascoaes sobreviveu-lhe 34 anos mais, até 1952. Agora, estão juntos no Des Arts.

“Já tivemos pessoas a pedirem para ficar em quartos de artistas específicos, como no de Mário Cesariny”, conta Roberto. E logo Cesariny, que chegou a escrever que Teixeira de Pascoaes foi um “poeta bem mais importante do que Fernando Pessoa“.

Vários quartos têm vista para o rio Tâmega. © Divulgação

As camaratas ainda não têm todas um artista a dar-lhes nome. Feitas em madeira, as camas nas camaratas maiores têm a particularidade de poderem recolher-se na parede e de só poderem ser abertas com uma chave. Há um balneário feminino e outro masculino, mas não há camaratas divididas por sexo. Há, sim, camaratas mais pequenas, de duas e quatro camas, que podem ser reservadas só por rapazes ou raparigas.

No piso das camaratas fica também uma cozinha comunitária, espaçosa, com tudo o que é preciso para cozinhar uma refeição. Até às 10h, é ali que são servidos os pequenos almoços. A partir daí, é de uso livre dos hóspedes. Já no piso zero, o da recepção, há um bar aberto até tarde, que aposta nos cocktails e nas tábuas de queijos e enchidos.

A esplanada fica virada para o rio Tâmega, logo ali ao lado, e será muito concorrida no verão. Mas o interior da sala também merece contemplação. Sobretudo o cantinho da parede com fotos de Agustina Bessa-Luís, Sophia de Mello Breyner e Eugénio de Andrade juntos, a foto de Mário Cesariny com Amélia e João Vasconcelos, os avós de Francisca, e um de muitos telegramas que Amadeo de Souza-Cardoso escreveu ao “querido amigo” Teixeira de Pascoaes, este assinado com a data de fevereiro de 1917, naquela sua caligrafia inconfundível.

No bar há fotos de Mário Cesariny na Casa de Pascoaes e um telegrama de Amadeo de Souza-Cardoso para Teixeira de Pascoaes. © Divulgação

Grande parte do espólio do poeta foi comprado pela Câmara de Amarante à família, em 2012. O que sobrou está na Casa de Pascoaes, junto com os muitos quadros de artistas como D’Assumpção, Cruzeiro Seixas, Mário Cesariny e também do sobrinho herdeiro, João Vasconcelos, espalhados nas paredes. Vasconcelos deixou tantos quadros que alguns podem ser agora vistos no novo hostel.

Um novo turismo rural na histórica Casa de Pascoaes

Teixeira de Pascoaes é o expoente máximo de uma família nobre ligada às artes, e isso é ainda mais visível aos que têm a sorte de visitar a Casa de Pascoaes, a apenas três quilómetros do Des Arts, e onde Teixeira de Pascoaes viveu toda a vida.

Quando a avó Amélia vivia no Solar do século XVII, que inclui alguns hectares de terreno onde ainda se produz o vinho Casa de Pascoaes, recebia alguns visitantes e com sorte, mostrava-lhes as divisões que conservava tal como sempre foram. Este ano, a família abriu em permanência, pela primeira vez, três quartos de turismo rural na propriedade que chegou a ser incendiada por forças napoleónicas e por onde passaram tantos escritores e pintores, de visita ao autor de Embriões.

Com preços entre os 60€ e os 80€, a experiência será certamente diferente de ficar no centro da cidade, num edifício acabado de renovar. Mas é o mais próximo que se poderá estar de compreender a paixão que o poeta sentia pela natureza, a sua vontade em passar todo o tempo que pudesse naquela casa, a ler e a escrever.

Uma coisa é certa. Amarante, cidade onde nasceram e viveram artistas que marcaram a literatura e a pintura em Portugal, acaba de ganhar dois alojamentos que lhe fazem justiça. E que nos recordam um excerto do poema “Canção duma Sombra”, de Pascoaes:

Sem esta terra funda e fundo rio / Que ergue as asas e sobe, em claro voo / Sem estes ermos montes e arvoredos / Eu não era o que sou.

Em cima, à direita, Mário Cesariny com Amélia e João Vasconcelos, os avós de Francisca. © Sara Otto Coelho / Observador

Nome: Des Arts – Hostel & Suites
Morada: Rua Cândido dos Reis, 53, 4600-055 Amarante
Telefone: 96 228 7457
Site: www.hosteldesarts.com